Anorexia e Bulemia: desprazer à mesa

Um desafio à mesa
Anorexia e bulimia são algumas das principais patologias causadas pelos chamados transtornos alimentares, que exigem tratamentos multidisciplinares, reunindo abordagens de Medicina, Psicologia e Psicanálise

Por Tovar Tomaselli

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As alterações relacionadas à alimentação se consolidam como um significativo problema, que pode ocorrer em consequência de fatores metabólicos ou psíquicos. Essas disfunções ganham, cada vez mais, relevância na mídia, em função do crescente número de casos de adolescentes que convivem com sérios problemas de saúde, inclusive com registros de mortes. No entanto, os distúrbios podem alcançar outras faixas etárias, transformando-se em um grande desafio para os profissionais de saúde.
Desde há muito venho me interessando pelas diversas patologias que compõem os assim denominados transtornos alimentares. Tanto a condução do tratamento como o seu prognóstico encontram-se em terreno bastante reservado. Sabemos que essas graves patologias possuem um percurso histórico dentro das mais variadas áreas, como Medicina, Psicologia e Psicanálise, entre outras. Assim sendo, pretendemos, sem nos estender demais, fazer uma breve retrospectiva histórica, abarcando as principais visões teóricas a respeito.
Sempre existiram pessoas anoréxicas, porém, somente após os estudos de Lasègue, essas pacientes passaram a ter relevância maior no cenário médico
Os primeiros estudos parecem datar de 1689, com Richard Morton, o qual publica, em latim, um trabalho intitulado Tisiologia sobre a doença da consunção, situando os seus sintomas mais relevantes, segundo ele: perda do apetite; amenorreia; emagrecimento importante. Para esse autor, as causas deveriam ser buscadas no sistema nervoso. Em 1789, Naudeau, na França, descreveria "uma doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos". Mas, na verdade, é em Pinel, no início do século XIX, que encontraremos uma verdadeira reflexão sobre a conduta alimentar e suas idiossincrasias. Segundo ele, tratava-se de uma "neurose das funções nutritivas", realizando uma referência direta à anorexia e à bulimia.
Um estudo mais amplo das patologias da conduta alimentar revelou uma ligação da anorexia com a bulimia, como dois tempos alternantes de uma mesma patologia
Vale salientar, como item importantíssimo, que, quando nos referimos a patologias alimentares, devemos necessariamente levar em consideração as dimensões social e cultural onde elas ocorrem: a obra, o autor e a sua época.
A título apenas de exemplo, conta-se que no antigo Japão o costume era jejuar, por vezes até a morte, contra o inimigo, no intuito de desonrá-lo.
Um nome extremamente relevante em relação às patologias alimentares é o de Lasègue, na França, o qual inicialmente situa a anorexia no campo da histeria. Obviamente, ao longo da História, sempre houve anoréxicas, mas pode-se dizer que elas só obtiveram relevância pública por intermédio dos trabalhos de Lasègue, os quais foram verdadeiramente um evento no campo da Medicina. Na conduta anoréxica, assistiríamos um prazer ou um gozo como força fundamental na organização psíquica. A anoréxica é toda poderosa em sua anorexia. O que nos leva a tecer algumas reflexões à luz do conceito de narcisismo:
Aquele que se pretende isento de necessidades fisiológicas como todos os mortais, seguramente está pautado, entre outras, na fantasia de ser Deus;
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Sigmund Freud foi o primeiro a relacionar a anorexia e a depressão, ressaltando que a doente perde o apetite e, também, a libido, investindo seu recalque no erotismo oral
- Na relação existente com a mãe, não se trataria aqui de uma mãe fálica, onde a anoréxica, para existir, teria que capitular do próprio desejo?;
- Como estudiosos da teoria psicanalítica, entendemos que o falo nada conta e sim quem é o seu detentor;
Sabemos também que, além do corpo real, existe o corpo erógeno, detentor das zonas erógenas. Prescindir de qualquer erotização em relação à presença de outro mantém a anoréxica numa posição autoerótica;
- O problema, quanto ao prognóstico em análise, deve-se, em termos kleinianos, à dificuldade de internalização do analista, como um objeto bom, o qual fantasmaticamente também deverá ser excretado num movimento bulímico posterior.
Enfim, chegamos a J.-M. Charcot, o qual inaugura um método de "isolamento terapêutico", objetivando o ganho de peso. É necessário encerrar, conter, conservar no interior.
Freud, no manuscrito G, ressalta a vinculação entre a anorexia e a depressão. A doente perde o apetite alimentar, juntamente com uma perda da libido. Dessa forma, diríamos que o recalque incidiria no erotismo oral. A zona bucolabial, intensamente erotizada, através de uma inversão, transforma- se numa repulsa alimentar.
Acrescentaremos a contribuição de Jacques Lacan, segundo o qual a necessidade visa o objeto e se satisfaz com ele. A dificuldade é que essa necessidade nunca ocorre senão in abstracto, fora de sua formulação através da linguagem. "A demanda é demanda de uma presença ou mesmo de uma ausência. Antes de tudo, trata-se de uma demanda de amor." Um estudo mais amplo das patologias da conduta alimentar revelou uma ligação da anorexia com a bulimia, como dois tempos alternantes de uma mesma patologia. Por enquanto, poderíamos depreender que a bulimia é o gozo ao mesmo tempo desejado e violentamente rejeitado pela anoréxica. Atualmente, a anorexia não mais se encontra vinculada à histeria, existindo como uma problemática autônoma.
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Charles Lasègue
Nascido em Paris, na França, em 1816, Charles Lasègue se formou em Psiquiatria sob a orientação de Jean-Pierre Falret. Era conhecido pela precisão de suas análises clínicas. Foi autor de De l'Anorexie Hystérique, em 1873, publicação que se mostrou um dos marcos fundamentais do conhecimento psicopatológico a respeito da anorexia mental. Também foi responsável por importantes trabalhos sobre alcoolismo. 
Jean Paul Valabrega, em 1967, nos diz que a anorexia se situa no cruzamento entre a ordem neurótica, psicótica, psicossomática e perversa.
Destaca-se, a partir da clínica psicanalítica, no que tange à patologia referente à anorexia, uma dimensão passional da relação da anoréxica com a mãe. B. Brusset a define assim: "A mãe é ao mesmo tempo indispensável e inaceitável". "Ela representa tudo o que me causa horror e, ao mesmo tempo, não posso dispensá-la, cabe a ela responder, compreender, espero tudo dela, que ela seja Deus para mim" (Bidaud, 1998).
Como exemplo, ele cita uma paciente anoréxica referindo-se à mãe: "Ela fica me olhando, ou me ajuda, por exemplo, a esfregar as costas. Também pode tomar banho comigo. A intrusão sedutora, como um 'olho indecente', vem da ausência de limites do olhar materno, que localiza a filha no lugar de um objeto incestuoso".
Éric Bidaud, estudioso dos distúrbios da conduta alimentar, nos diz literalmente: "A anoréxica, por uma recusa obstinada da alimentação, por uma luta sem perdão contra a necessidade, afirma, desprezando a morte, a soberania de seu desejo, desafiando todos os limites, chegando a negar o seu corpo, inclusive. Fugindo de todo prazer carnal, ela aspira ao ser. Tal como uma mística, ela goza numa transgressão sempre relançada na expectativa de se perder, de se abolir como sujeito. Ela oferece ao olhar o espetáculo insuportável de um corpo descarnado, esquelético, que presentifica a morte. Ressalta o parentesco existente com exercícios espirituais da ascese e do jejum, práticas religiosas fundamentadas na exigência de purificação e do apelo ao sagrado".

fonte: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/114/um-desafio-a-mesa-anorexia-e-bulimia-sao-algumas-355820-1.asp > acesso em 07/07/2015 

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