O inferno do igual - Revista Caros amigos.

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O inferno do igual

O inferno do igual
Por Ciro Marcondes Filho
Han-Agonia del erosÀs vezes precisamos de certos vazios. Nos fazem falta espaços em branco na vida. Momentos em que a gente pode parar e pensar. Se entregar ao Nada. Na língua alemã existe uma correlação entre a lacuna e a felicidade: ser feliz é poder ter o direito de criar certas brechas na existência. Pois uma vida levada sem interrupção não é vida, é um mero existir cansativo e inútil. E a sociedade contemporânea não faz outra coisa senão insistir no eterno movimento, na inércia polar, de que falou uma vez Paul Virilio, como nos parques aquáticos em que andamos e andamos sem sair do lugar.
Um autor que se ocupa dessa nossa miséria cotidiana é o coreano Byung-Chul Han, especialista em Heidegger, professor de filosofia na
Universidade de Berlim. Para ele, vivemos hoje sob novas formas de opressão, sutis e disseminadas pela sociedade: o inferno do igual, a ausência do negativo, a coação icônica e um mercado em que se expõem, se vendem, e se consomem intimidades.
Eros
Comecemos pelo último, constituinte de seu livro Agonia do Eros (Barcelona, Herder, 2014). Aqui, Han comenta as teorias de que o amor estaria morrendo, que as paixões teriam se esfriado mas a questão principal se localizaria, de fato, na “erosão do outro”. O outro desaparece pelo excesso de narcisismo estimulado pelas redes digitais. Para Han, Eros deveria arrancar o sujeito de si mesmo e conduzi-lo para fora, para o outro; pôr em marcha um voluntário “desreconhecimento” de si mesmo, um esvaziamento consentido própria pessoa. Ora, o que acontece hoje é exatamente o contrário, vivemos sob o inferno do igual, que não permite nenhuma experiência verdadeiramente erótica, pois esta pressupõe a assimetria entre as duas pessoas e a exterioridade do outro. O outro que me fascina não pode estar aqui, ele carece de lugar, é atópico. Mas os relacionamentos atuais só fazem aplainar o outro, alisá-lo. Desaparece aquela “distância imaginária” que o tornava desejado. O próprio rosto do outro, enaltecido por alguns filósofos como “semblante”, que se dá e se esconde ao mesmo tempo, torna-se mera cara, rosto que se expõe o tempo todo como mercadoria, com uma nudez pornográfica, que se entrega a uma visibilidade e a um consumo total. Para Han, os muros e as fronteiras já não excitam a fantasia, já não engendram o outro. Eros se dirigia a esse outro mas o capitalismo, diz Han, elimina a alteridade para submetê-la ao consumo.
Igual
De fato, vivemos no inferno do igual. No livro A Sociedade da Transparência (Herder, 2013) há a defesa da tese de que as coisas se fazem transparentes quando abandonam a negatividade. De que há uma coação sistêmica que se apodera de todos os eventos da sociedade e os submete a uma profunda mudança. Seu interesse é tornar tudo transparente para melhor operacionalizar e acelerar. A negatividade do outro ou do estranho atrapalha, pois impõe resistência e retardamento a essa máquina.
A resistência, assim, estaria nas estratégias de distanciamento, de criação de vazios na informação e na visão. Trata-se de sair da Sociedade do Cansaço, outro livro dele, que diz que qualquer reação a esta sociedade corre o risco de ser inibida por um sentimento de impotência. Mas não. Ainda não estamos mortos. Apesar das aparências. Ainda dá para desacelerar as máquinas, reinstituir a alteridade, provocar a pane no sistema por meio da instigação dos processos de fechamento.
É o que consta, por exemplo, na pequena obra Por favor, Feche os Olhos (Berlim, 2013), publicada somente na Alemanha. Aqui, Han comenta que necessitamos do tempo do silêncio, que não se pode apressar tudo. Acelerar infinitamente é o que faz um processador, que trabalha de forma aditiva mas não narrativamente.
O que incomoda em nossa sociedade atual informatizada nem é tanto a aceleração, diz ele, mas a falta de finalização, de término das coisas. Nos faz falta o processo da narrativa, porque ele fecha os acontecimentos. Mas a percepção hoje é incapaz disso, fica zapeando infinitamente pela rede digital, nos torna eternamente ligados, assistindo a imagens sem fim, incapacitando-nos de fechar os olhos.
"Curtir"La sociedad de la tranparencia
Han é um pensador coreano que põe em xeque a lógica dominante em todo o planeta, mas principalmente nas sociedades ocidentais. Ele não se conforma que o Facebook não tenha um dispositivo que permita o “não curti”, mas só o “curtir”. É que a sociedade positiva, diz ele, evita qualquer modalidade de jogo com a negatividade, pois esta detém a comunicação. Uma foto digital, por exemplo, não tem negativo nem no sentido físico nem no sentido filosófico. É um puro positivo que apaga o devir, o envelhecer, o morrer. Desaparece a temporalidade. Trata-se de uma fotografia transparente, sem nascimento nem morte, sem destino nem acontecimentos, ela não fala...
Somos todos coagidos à exposição, que nos despoja de nosso rosto. A tirania da visibilidade nos exige que todos, o tempo todo, se convertam em imagem. E as imagens têm sempre que sorrir, ninguém pode tirar fotos em estado natural.
Tampouco nos é permitida uma reflexão estética das imagens, pois esta exige um tempo, um fechar de olhos. Ao contrário, fotos que exigem apenas um “curtir” perdem a densidade, a complexidade, não tem mais dramaturgia, coreografia, cenografi a, tornam-se pornográficas. Pornografia é o contato imediato entre imagem e olho.
Vivemos a época do horror ao vazio, que os antigos chamavam de horror vacui. Todos os mínimos espaços têm que ser preenchidos, nada pode ficar em branco, não é permitida a pausa. Somos compelidos a produzir sempre e em velocidade. A viver uma sucessão de instantes, um tempo correndo sem direção e se decompondo em presentes sucessivos. Efetivamente, não vivemos. Mas precisamos nos retirar, encerrar a narrativa, fechar os olhos para que a vida não nos escorra por entre os dedos...

♦ Ciro Marcondes Filho é jornalista e professor titular da ECA-USP.Muito BOM 
http://www.carosamigos.com.br/index.php/component/content/article/239-revista/edicao-207/4225-o-inferno-do-igual

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