A REPRESENTAÇÃO DO CORPO FEMININO 100 ANOS DEPOIS


Por Laéria Fontenele


Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, foram responsáveis por dar prosseguimento à revolução promovida por sua obra canônica, A interpretação dos sonhos. Na obra de 1905, o concito de pulsão será o responsável por redimensionar o entendimento da sexualidade humana, ao mostrar o seu definitivo afastamento da ordem natural e puramente biológica, rompendo com a segregação psicopatológica, em relação às formas de manifestação sexual, consideradas desviantes por saberes que, mais do que científicos, eram morais. Nesse mesmo ano, a publicação do caso “Dora”, realiza importantes deslocamentos no que diz respeito a aspectos da vinculação entre sintoma, corpo e desejo na histeria.

A importância clínica e teórica desses textos fundamentais é plural e incomensurável, se considerarmos o pouco que nossa cultura avançou, desde então, com a inscrição nela impressas das descobertas freudianas acerca da sexualidade humana, uma vez que a incorporação de muitas de suas idéias exigiu, na mais das vezes, o mecanismo de admiti-las somente por meio de sua negação . Diante da pluralidade dessas contribuições, ressaltamos, sobretudo, o repúdio de Freud ao ódio à diferença, que, mesmo sendo correlativo à dificuldade de inscrição psíquica da diferença sexual, é algo que tem de ser submetido à apropriação simbólica. Dentre as diversas repercussões de suas teses acerca da sexualidade, e de seu fator preponderante na etiologia das neuroses, pretendemos destacar a contribuição de Freud para uma nova compreensão do feminino, especificamente no que diz respeito às mutações acerca da representação do corpo feminino empreendida pela nossa cultura e saberes nela circulantes sobre o tema.

O século XIX e início do século XX foram marcados por um discurso no qual o corpo feminino era representado como tributário do corpo da mulher, visto na sua condição puramente biológica. Apreende-se, nesse momento da história de nosso pensamento ocidental, então, o corpo feminino enquanto marcado por uma singularidade: o de ser tomado em sua face invisível. Tal invisibilidade transporia o domínio de sua superfície tangível, prestando-se a funcionar como enigma a ser interpelado e como ponto cego, a partir do qual o corpo feminino se mostraria em sua ambigüidade, dimensionado que estava a partir do princípio masculino como seu modelo referencial. A afirmação da preponderância do masculino por sobre o feminino é patente, então, através da afirmação do masculino como princípio universal, encontrando seu alicerce na suposição do feminino como variante inferior do masculino, tributária da própria forma como, nesse período, imprimia-se a definição social dos órgãos sexuais a partir de apropriações falseadas de suas propriedades naturais. (Bordieu,1999)

Associando-se feminino e corpo, observa-se, ainda, que a representação filosófica do corpo manifesta uma regularidade desde Platão até o positivismo moderno: a de ser tomado como o inimigo principal da objetividade (Jaggar e Bordo, 1997). Nessa constante, o predomínio da relação entre corpo feminino e baixo ventre – aludindo a forças naturais - e do masculino com a cabeça – representando as forças racionais – demonstra, com as devidas variações em momentos diferentes do pensamento filosófico, a dificuldade de abordar o Outro sexo para além de uma lógica misógina. Se, antes do final do século XIX, só era possível representar o corpo da mulher segundo o seu sexo biológico, é relevante a observação de que, em meados desse mesmo século , os discursos médicos sobre a histeria, associavam-na às perturbações dos órgãos genitais femininos, como exteriorização da face invisível do corpo. Por outro lado, essa forma de pensar o feminino e representá-lo dava-se a ver nos discursos sociais, que manifestavam as representações imaginárias do feminino como fantasma do anatômico, entrecruzando-se com o discurso mítico-religioso, pois este via, nesse fantasma-anatômico, a ligação entre a interioridade do corpo feminino e a face demoníaca da criação humana enquanto metáfora da vida. O discurso sobre o corpo apoiava-se, então, na idéia de que o corpo feminino continha em si uma dimensão obscura capaz de romper a ordem natural da exterioridade corpórea e produzir uma desordem invisível, indomável e, até mesmo, sobrenatural. (Swain, 1986)

O final do século XIX gesta uma série de transformações em tudo isso, a partir das repercussões da concepção romântica da mulher idealizada, cujo corpo afasta-se da dimensão puramente objetal, e isso a transforma num ser capaz de encarnar as múltiplas imagens femininas: a de virgem, mãe, esposa, dentre outras. No mesmo período, constrói-se o discurso médico sobre as doenças que acometiam as mulheres; nesse contexto, a histeria é eleita como modelo privilegiado da revelação entre corpo e feminino. Os tratados médicos sobre a histeria difundiram uma nosografia ideologicamente impregnada pelo lugar elevado que o romantismo veio conferir à mulher. No entanto, de seu pedestal, poder-se-ia vê-la, a partir do discurso médico, como vítima de sua corporeidade singular.

A ruptura, provocada por Freud, (1988) acerca da concepção de histeria como um modo de manifestação do sintoma no corpo, determinado pela origem sexual das neuroses, foi decisiva para que, na cultura, a relação entre corpo e mulher fosse deslocada do eixo imaginário para o eixo simbólico, e para que, então, culturalmente, o corpo passasse a ser tomado como índice de um sistema de representações e não mais como signo de seu núcleo biológico. O discurso psicanalítico produzirá, então, uma nova forma de inteligibilidade sobre o corpo, capaz de um movimento de não-retorno aos outros discursos que a ela antecederam. Para que esse corte ocorresse, foi de fundamental importância a elaboração do conceito de pulsão e das noções de auto-erotismo e das teorias sexuais infantis, inaugurados por Freud em 1905.

O conceito de inconsciente associado ao de pulsão possibilitam a Freud destituir a soberania da tese que afirmava a existência do dualismo entre psíquico e somático. Notadamente, o que a clínica da histeria lhe permite formular é a existência de um impacto físico do real do inconsciente. A manifestação do sexual no corpo, a partir das bordas pulsionais e do investimento narcísico, atesta que o ato inconsciente, uma vez exercido no somático, produz uma ação plástica. Tal ação não seria factível do ponto de vista da consciência. Segundo Assoum, (1997) será através da inteligibilidade da manifestação do sexual no corpo que Freud realizará uma outra ruptura, igualmente decisiva, para a subversão do dualismo entre psíquico e somático: a disjunção entre o orgânico e o físico. Tal pode ser atestado no triunfo que o sintoma histérico obtém por sobre a anatomia, subvertendo-a a partir da atividade da fantasia.

A histeria, além de não mais ser exclusiva de mulheres, não mais poderá ser vista como o efeito da corporeidade sobre o psíquico ou como o seu contrário à prevalência no corpo de um efeito psíquico. Portanto, a prevalência de sintomas que têm no corpo a sua forma de expressão não será mais associada à mulher, mas ao feminino enquanto tangenciador do pólo da passividade. Disso resultará o primeiro passo para a realização da disjunção entre feminino e mulher e sintoma. Acresce-se a isso a tese de Freud acerca da existência de um saber endógeno em jogo na elaboração, pelo infante, das teorias sexuais infantis. Tal se daria através da corrente libidinal que passa pelo corpo infantil em decorrência das incidências nele existentes da fantasia do Outro parental. Seria esse saber o responsável, do ponto de vista estrutural, por dar suporte aos processos histéricos. Em outras palavras, a predominância do sintoma na histeria promove o acolhimento da fantasia pelo corpo. (Assoun, 1997). Portanto, algo muito diverso de uma causalidade relativa à anatomia do homem ou da mulher.

Um prolongamento importante da recusa relativa à causalidade orgânica, funcional e psicológica das particularidades falseadas do anatômico se dará a partir da elaboração do conceito de narcisismo, conseqüência das descobertas realizadas em 1905. No texto de 1914, merecem relevo as contribuições de Freud acerca da etiologia do sintoma na hipocondria, que atestam estar o organismo do sujeito humano submetido a uma lógica estranha à realidade consciente. A diferenciação entre histeria e hipocondria será realizada - ao contrário da psicopatologia anterior à época de Freud que as considerava, respectivamente, uma doença de mulheres e uma doença de homens – pela recusa da distância entre doença orgânica e doença imaginária. Na hipocondria, ocorreria uma transformação na economia da libido sob impacto do narcisismo semelhante à ocorrida nos estados de adoecimento.

Os progressos clínicos relativos ao entendimento da economia libidinal em ação na produção do sintoma – em decorrência das noções de auto-erotismo, narcisismo, primado do falo e fantasia – serão acrescidos, na segunda tópica, aos avanços correlativos à descoberta do conceito de repetição e dos conseqüentes redimensionamentos acerca do conceito de eu e de pulsão de morte. Novos deslocamentos serão operados quanto à junção entre sintoma, feminino, corpo e mulher. Será firmada, nesse momento, uma decisiva diferenciação entre feminino e feminilidade. O feminino virá a significar uma posição estrutural específica do sujeito frente à diferença sexual, enquanto a feminilidade seria um destino da sexualidade da mulher em conseqüência das diferenças a ela cabíveis na lógica edípica. A feminilidade seria, ainda, entendida no seu entrecruzamento com a cultura, que, segundo Freud, trabalharia no sentido de sua negação – sendo esta, incisivamente, por ele criticada; Freud, um feminista dos mais lúcidos que a história já conheceu.

O seu debate com os textos de inspiração feministas da época – hoje considerados eminentemente problemáticos por considerarem que a simples independência financeira da mulher e sua inserção no mercado de trabalho seriam suficientes para dissolver a negação da feminilidade pela cultura – é rico em ensinamentos, bem como diagnostica muitos dos impasses que o movimento feminista deparará em nossa época, marcada que está pelo cultivo do corpo feminino como objeto fetiche capaz de adquirir um brilho cada vez mais intenso a partir do cultivo do que Foucault (1986) nomeia de corpo inteligível e corpo prático: o primeiro abarcando as representações científicas, filosóficas e estéticas sobre o corpo feminino; e o segundo, a concepção cultural que abrange os modelos de saúde e as normas de beleza.

A incidência da disjunção feminino-mulher se fez presente nos movimentos sociais feministas, que dialogaram de forma dissonante com o saber freudiano, desconhecendo serem esses movimentos uma invenção discursiva que não teria se constituído sem a própria penetração cultural e científica do discurso freudiano acerca da sexualidade. No século XX, duas correntes feministas se fizeram predominantes: o feminismo que defendia a igualdade entre homens e mulheres; e o feminismo francês que defendia a diferença irredutível entre homens e mulheres. (Fontenele,2002)

O feminismo defensor da igualdade manifestou-se sobretudo nos planos sociais e políticos; e, muito embora, afirmasse a necessidade da mulher se manifestar como sujeito de seu discurso - em consonância com a psicanálise - por outro lado, negou a tese freudiana do primado do falo, confundindo o seu sentindo de operador simbólico com o órgão sexual masculino, e o acusava por esse equívoco de falocêntrico.

O diálogo do feminismo francês da diferença com a psicanálise foi diverso. Para esse movimento, a libertação da mulher não seria completa sem a transformação da linguagem como instrumento operacional da cultura e da sociedade. A intervenção feminina no âmbito cultural e criativo consistiria na proposta de uma nova ordem simbólica, baseada na desconstrução da linguagem de cunho androcêntrico e constução da expressão do diverso como singularidade irredutível e resistente à significação totalitária. (Naudier, 1997) Com isso, eles teriam enraizado, sobretudo, a lógica da diferença como afirmadora das particularidades do feminino e do masculino enquanto heterogeneidades, - o que, antes dessa demarcação, permitia a crítica da associação entre diferença e inferioridade do feminino. No entanto, a assimilação do conceito de diferença nesse contexto, não comportava a disjunção feminino-mulher e estava marcado pela confusão entre feminino e feminilidade.

O diálogo com o saber freudiano, baseado nessas incongruências, se deu não só no sentido de gerador de positividades e conquistas, mas também no sentido restritivo na medida em que elas defendiam a lógica fálica como eminentemente relativa aos homens e defendiam a construção de uma forma de expressão para além da lógica fálica; – o que sabemos ser incompatível com o saber psicanalítico, pois a lógica fálica é concernente ao mecanismo de recalque, e considerar as mulheres como sendo agenciadoras de uma lógica não fálica seria representá-las como loucas. O fato de a psicanálise defender que o feminino se posiciona para além do falo, demonstra uma lógica inclusiva e excedente quanto ao falo e não implica a sua exclusão.

Apesar disso, o efeito das lutas e de novos discursos que passam a circular, desde então, demonstram a importância da psicanálise para que o sujeito mulher agenciasse, em nossa cultura, um discurso sobre si mesma, edificando a historicidade do feminino quer do ponto de vista da forma como vai transpor os limites do invisível e do privado por sua inserção na esfera pública, quer por se faz ouvir, não mais sendo dita pelo biológico ou pela ordem médica. Com certeza, as rupturas empreendidas por Freud não foram suficientes para neutralizar o trabalho da cultura em detrimento da feminilidade, mas é nossa tarefa retomar sua letra e sua teima em dizer o que sabia ser de difícil apreensão.





Bibliografia:



ASSOUN, P-L. Corp set symptôme. Tome 1 Clinique du corps. Paris: Anthropos, 1997

____________. Freud e a mulher. Rio: Jorge Zahar, 1993

BOURDIEU, P. A dominação masculina; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

FONTENELE, L. A máscara e o véu. O discurso feminino e a poesia de Adélia Prado. Rio: Relume Dumará, 2002

FOUCAUT, M. Vigiar e punir. História da violência nas prisões.Petrópolis: Vozes, 1986

FREUD, S. (1893-95). Estudios sobre la histeria; Em Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1987.

_________ (1905) Tres ensayos de teoria sexual. Em Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1987.

_________ (1905 [1901]). Fragmento de análisis de um caso de histeria. Em Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1987.

_________ (1933) La feminidad. Em Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1987

JAGGAR. Alison M. & BORDON, Susan R. (Org) Gênero, corpo, conhecimento; Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997

NAUDIER, D. Écriture Féminine, Écriture Subversive? En Suplément au numéro 120 de Actes de la Recherche en Sciences Sociales, décebre de 1997.

SWAIN, G. As metamorfoses da histeria no fim do século XIX, Em Swain, Gladys [et. al.] O Feminino: aproximações. Rio de Janeiro: Campus, 1986.

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