Freud e os mistérios da masculinidade


CONHEÇAM MARIA RITA KEHL

.Não se sabe que motivos levaram o escritor Grégoire Bouillet a encerrar por e-mail a relação amorosa com a artista plástica Sophie Calle. De fato, o protocolo contemporâneo da gestão dos afetos não recomenda o método e nem a mídia, considerada impessoal e burocrática demais frente às razões do coração. Os visitantes da exposição “Cuide de você” (“Prennez soin de vous”), que ocupou o SESC Pompéia entre 10/7 e 7/9 tiveram acesso a uma cópia da carta de rompimento, mas não às razões pelas quais o autor preferiu o e-mail a uma conversa pessoal. Quem sabe ele tivesse tentado romper a relação antes, pessoalmente, sem sucesso? Ou temesse por parte de Sophie uma cena melodramática e constrangedora, no limite do decoro tão caro aos parisienses?

O fato é que a ex-namorada conseguiu reverter a humilhação provocada pelo pé na bunda eletrônico de Grégoire convocando, a seu favor, uma fervorosa adesão feminista, pós-moderna, multidisciplinar e internacional. As 107 mulheres a quem Sophie enviou a carta de Grégoire a pretexto de consultá-las sobre como respondê-la foram unânimes em condenar a falta de etiqueta, de sensibilidade e, por que não? – de macheza por parte do rapaz.. É possível agrupar as objeções das amigas de Calle em duas categorias principais: as críticas ao estilo supostamente literário de Bouillet e os diagnósticos de coloração psicanalítica à personalidade do rapaz. A carta de Grégoire foi considerada kitsch, maneirista, antiquada, estereotipada, brega, convencional – observações que teriam ferido de morte o escritor se a carta fosse uma peça literária. Já sua personalidade, foi diagnosticada por mulheres de diversas profissões como egoísta, infantil, narcisista, insegura, dissimulada e despreparada para o amor. Grégoire foi condenado, com base no código de ética pós-feminista, por um delito moderno tipicamente masculino: o de não estar à altura da imensa capacidade de amar das mulheres.

É provável que elas tenham razão. Não é difícil perceber o cabotinismo do rapaz, que tenta se passar por uma vítima de sua própria infidelidade. O que me interessa, entretanto, é observar que as fraquezas de caráter de que Grégoire é acusado são, sem tirar nem por, idênticas às características atribuídas por Freud às próprias mulheres, desde seu texto Introdução ao Narcisismo, de 1914. Infantilidade, narcisismo, egoísmo, frieza de sentimentos e uma habilidade para a dissimulação desenvolvida a partir de seu complexo de castração, compõem a estilística da feminilidade, segundo a observação freudiana. Em vários outros textos, entre os quais O Ego e o Ide, de 1920, A Sexualidade Feminina (1931) e A feminilidade (1933), Freud confirma suas observações anteriores. A repressão sexual à qual as moças eram submetidas desde a infância, o desconhecimento da vagina, o sentimento de humilhação devido á inferioridade de seu minúsculo órgão sexual em comparação com o falo masculino, tudo contribuiria para tornar as mulheres frígidas no sexo e arredias no amor. Do homem, uma mulher só desejaria duas coisas: que a colocasse em um pedestal de modo a confirmar seu valor como objeto privilegiado do desejo dele; e que lhe propiciasse a única e verdadeira experiência de plenitude a que a mulher teria direito: não o extase do sexo, mas o da maternidade. A feminilidade seria uma espécie de preço pago pela mulher ao homem, visando a obtenção do falo-filho. “A mulher freudiana é aquela que diz ‘obrigada’ ao homem”, esceveu Colette Soler.

O homem freudiano seria o narciso ferido, sempre inseguro de seu valor; eterno amante dedicado a conquistar o amor da virgem inexperiente a quem caberia, depois do casamento, reconhecer a virilidade dele. A mulher representava o objeto misterioso que, embora dependente material e juridicamente do parceiro, jamais lhe revelaria o segredo de seu desejo e de seu gozo. O homem freudiano ocupa a posição do amante e a mulher, a do objeto idolatrado. Mas para que a estratégia funcione, é essencial que a moça conserve uma aura de mistério e de estudada indiferença. Nisso consiste a mascarada da feminilidade, cuja função é ocultar a verdade do desejo e da castração femininos.

Onde se encontram, hoje, as “verdadeiras” mulheres freudianas? Teremos nós, gerações pós-feministas, esquecido os artificios e artimanhas que nos faziam tão atraentes quanto inacessíveis para a fantasia masculina? Hoje, não nos parece que os homens é que andam arredios, ao passo que as mulheres do século XXI se comportam como guerreiras assediadoras da gélida fortaleza masculina? “O que faço para sustentar meu desejo por esta que se entregou a mim desde o primeiro momento?” perguntam os rapazes de hoje que, por angústia e vingança, transformam suas amadas em grandes mães assexuadas.

A linha divisória entre homens e mulheres, pelo visto, perdeu sua antiga fixidez, trazendo mobilidade e liberdade para ambas as partes. Se o falo não é um pênis e sim um significante, seu manejo está franqueado a homens e mulheres. Só que, ao insistir em sustentar a equação pênis=falo, os homens acabam por se colocar em uma posição muito mais frágil do que as mulheres. Estas recém descobriram, por conta da própria psicanálise, que o órgão masculino só possui o valor fálico que elas lhe conferirem.

Freud estaria enganado em suas observações a respeito das diferenças entre os sexos, das quais faço aqui uma proposital caricatura? Não creio. O que ele não poderia prever é que as transformações da cultura, para as quais a psicanálise desempenhou no século XX um papel central, fariam por deslocar as mulheres de seus lugares tradicionais até exigir a construção de outra feminilidade ou, ainda mais: de outra relação dialética entre homens e mulheres.

Não é impossível então, que na medida em que as mulheres se livraram de algumas restrições sexuais e existenciais impostas pela moral vitoriana, a linha demarcatória entre a masculinidade e a feminilidade tenha se deslocado – forçando os homens, por enquanto, a jogar na defensiva. Freud já havia percebido a existência de um hiato na complementariedade imaginária entre homens e mulheres, a ponto de perguntar a sua amiga Marie Bonaparte: mas afinal, o que quer uma mulher? Pergunta que repercutiu em todas as geraçaões de psicanalistas, sobre tudo homens. Ora: é claro que ninguém pode saber o que deseja uma mulher. O desejo é, por definição, inconsciente. Um homem também desconhece seu próprio desejo.

Quanto ao suposto mistério do querer feminino, este que se manifesta através de fantasias triviais e de pequenas reivindicações dirigidas ao outro – bem, nesse caso qualquer mulher pós-freudiana poderia responder: eu quero o mesmo que você, seu bobo. Você só não percebe porque não quer saber que eu sou sua semelhante, sua rival, sua irmã.

E nesse caso, a diferença sexual continua um mistério – para os homens e para as mulheres.

Disponivel em:http://www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=258> Acesso em 27 de dezembro



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