A história das mulheres no Brasil


sexta-feira, 17 de agosto de 2012A  - Mary Del Priore (Org.), 1997.


Li esse livro como bibliografia básica do meu TCC (inacabado, e sem previsão). Um compêndio de excelente qualidade, composto de artigos de vários profissionais da área. Se propõe a contar as diversas histórias da mulher no Brasil. O livro começa a viagem desde os tempos colonias, através de análises interessantíssimas dos relatos dos primeiros viajantes, assim como das ilustrações dessas obras que transmitiam as primeiras impressões sobre o povo nativo das terras brasileiras. Sempre com foco no elemento feminino.

Passa pelos reflexos culturais ainda fortemente ligados à mentalidade medieval, seguindo de forma muito fluída até a contemporaneidade.





O livro é um verdadeiro calhamaço, me assustou logo de cara. Tanto que já tinha decidido de antemão ler apenas os capítulos do período que dissesse respeito ao meu trabalho. Por acaso comecei a ler o primeiro artigo, e daí foi só amor. Realmente muito gostoso de ler. Seu formato, dividido em artigos, de diferentes autores, com linguagem super acessível, torna a leitura um verdadeiro prazer. Também acaba sendo muito interessante e diferente, por trazer uma abordagem mais cultural da história da mulher, apresentando fontes históricas alternativas, como, por exemplo, a história oral, a cultura popular, etc.



Seguem alguns trechos:

A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos. p. 7 (Mary Del Priore)





Além de estudar o cotidiano das mulheres, e as práticas femininas nele envolvidas, os documentos nos permitem aceder às representações que se fizeram, noutros tempos, sobre as mulheres. Quais seriam aquelas a inspirar ideais e sonhos? As castas, as fiéis, as obedientes, as boas esposas e mães. Mas quem foram aquelas odiadas e perseguidas? As feiticeiras, as lésbicas, as rebeldes, as anarquistas, as prostitutas, as loucas. p. 8 (Mary Del Priore)





As histórias aqui contadas refletem as mais variadas realidades: o campo e a cidade, o norte, o sudeste e o sul. Os mais diferentes espaços: a casa e a rua, a fábrica e o sindicato, o campo e a escola, a literatura e as páginas de revista. E, finalmente, os múltiplos extratos sociais: escravas, operárias, sinhazinhas, burguesas, heroínas românticas, donas de casa, professoras, bóias-frias. p. 8 (Mary Del Priore)





Teria então chegado o tempo de falarmos, sem preconceitos, sobre as mulheres? Teria chegado o tempo de lermos, sobre elas, sem tantos a priori ? Muito se escreveu sobre a dificuldade de se construir a história das mulheres, mascaradas que eram pela fala dos homens e ausentes que estavam do cenário histórico. Esta discussão está superada. As páginas a seguir oferecem o frescor de uma estrutura na qual se desvenda o cruzamento das trajetórias femininas nas representações, no sonho, na história política e na vida social. p. 8-9 (Mary Del Priore)





Não nos interessa, aqui, fazer uma história que apenas conte a saga de heroínas ou de mártires: isto seria de um terrível anacronismo. Trata-se, sim, de enfocar as mulheres através das tensões e das contradições que se estabeleceram em diferentes épocas, entre elas e seu tempo, entre elas e as sociedades nas quais estavam inseridas. Trata-se de desvendar as intricadas relações entre a mulher, o grupo e o fato, mostrando como o ser social, que ela é, articula-se com o fato social que ela também fabrica e do qual faz parte integrante. As transformações da cultura e as mudanças de idéias nascem das dificuldades que são simultaneamente aquelas de uma época e as de cada indivíduo histórico, homem ou mulher. p. 9 (Mary Del Priore)









Colônia:





Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições eclesiásticas. (Emanuel Araújo, p. 45)





Nunca se perdia a oportunidade de lembrar às mulheres o terrível mito do Éden, reafirmado e sempre presente na história humana. Não era de admirar, por exemplo, que o primeiro contato de Eva com as forças do mal, personificadas na serpente, inoculasse na própria natureza do feminino algo como um estigma atávico que predispunha fatalmente à transgressão, e esta, em sua medida extrema, revelava-se na prática das feiticeiras, detentoras de saberes e poderes ensinados e conferidos por Satanás. (Emanuel Araújo, p. 46)





O ideal do adestramento completo, definitivo, perfeito, jamais foi alcançado por inteiro. A Igreja bem que tentava domar os pensamentos e os sentimentos, muitas vezes até com algum, sucesso, mas nem todo mundo aceitava passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em determinadas circunstâncias. Contudo, parece que o normal era a introjeção, por parte das próprias mulheres, dos valores misóginos predominantes no meio social; introjeção imposta não só pela Igreja e pelo ambiente doméstico, mas também por diversos mecanismos informais de coerção, a exemplo da tagarelice de vizinhos, da aceitação em certos círculos, da imagem a ser mantida neste ou naquele ambiente etc. Os desvios da norma, porém, não eram tão incomuns numa sociedade colonial que se formava e muitas vezes improvisava seus próprios caminhos muito longe do rei. (Emanuel Araújo, p. 53)





Na época colonial a mulher arriscava-se muito ao cometer adultério. Arriscava, aliás, a vida, porque a própria lei permitia que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero.” (Emanuel Araújo, p. 59)





Num cenário em que doença e culpa se misturavam, mostra como o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja Católica quanto por médicos: um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam. Qualquer doença, qualquer mazela que atacasse uma mulher, era interpretada como um indício da ira celestial contra pecados cometidos, ou então era diagnosticada como sinal demoníaco ou feitiço diabólico. Esse imaginário, que tornava o corpo um extrato do céu ou do inferno, constituía um saber que orientava a medicina e supria provisoriamente as lacunas de seus conhecimentos. p. 78 (Mary del Priore)





Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava do homem apenas pelo conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas características morais. p. 79 (Mary del Priore)





É importante lembrar que, à época, a ciência médica começava a adquirir a imagem de um saber devotado e infalível, que impunha progressivamente as normas da vida saudável, assumindo, por fim, uma função de vigilância social e moral. Contra esse pano de fundo, uma espécie de ternura patética tomou conta da pluma dos médicos, que procuraram descrever a mulher como um ser frágil, carente de vontade, amolengada por suas qualidades naturais que seriam a fraqueza, a minoridade intelectual, a falta de musculatura, a presença da menstruação. Melhor submeter-se docilmente à servidão que a natureza impunha ao gênero feminino. p. 105 (Mary del Priore)

fonte: br/2012/08/a-historia-das-mulheres-no-brasil-mary.html acesso 20 de agosto







Século XIX:









Mulher e família burguesa. Maria Ângela D’Incao.





Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade - burguesa - reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor. p. 223





Presenciamos ainda nesse período o nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela como forma de proteção ao mundo externo também marcaram o processo de urbanização do país. p. 223





Nas casas, domínios privados e públicos estavam presentes. Nos públicos, como as salas de jantar e os salões, lugar de máscaras sociais, impunham-se regras para bem-receber e bem-representar diante das visitas. As salas abriam-se freqüentemente para reuniões mais fechadas ou saraus, em que se liam trechos de poesias e romances em voz alta, ou uma voz acompanhava os sons do piano ou harpa.

As leituras animadas pelos encontros sociais, ou feitas à sombra das árvores ou na mornidão das alcovas, geraram um público leitor eminentemente feminino. A possibilidade de ócio entre as mulheres de elite incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais consumidas entre um bordado e outro, receitas de doces e confidências entre amigas. As histórias de heroínas românticas, langorosas e sofredoras acabaram por incentivar a idealização das relações amorosas e das perspectivas de casamento. p. 228-9





As alcovas, espaço do segredo e da individualidade, forneciam toda a privacidade necessária para a explosão dos sentimentos: lágrimas de dor ou ciúmes, saudades, declarações amorosas, cartinhas afetuosas e leitura de romances pouco recomendáveis. “A máscara social será um índice das contradições profundas da sociedade burguesa e capitalista [...] em função da repressão dos sentimentos, o amor vai restringir-se à idealização da alma e à supressão do corpo”. p. 229





Num certo sentido os homens eram bastante dependentes da imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu grupo de convívio. Em outras palavras significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas, do pai ou do marido. Esposas, tias, filhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais) cuidavam da imagem do homem público; esse homem aparentemente autônomo, envolto em questões de política e economia, estava na verdade rodeado por um conjunto de mulheres das quais esperava que o ajudassem a manter sua posição social. p. 229-30





O que a literatura do período informa é que a mulher das classes baixas, ou sem tantos recursos, teve maiores possibilidades de poder amar pessoas de sua condição social, uma vez que o amor, ou expressão da sexualidade, caso levasse a uma união, não comprometeria as pressões de interesses políticos e econômicos. As mulheres de mais posses sofreram com a vigilância e passaram por constrangimentos em suas uniões, de forma autoritária ou adoçada, na sua vida pessoal. Para elas o amor talvez tenha sido um alimento do espírito e muito menos uma prática existencial. p. 234





É certo que os relatos dos cronistas, viajantes e historiadores do período nos exibem um quadro em que a menina ou a mulher candidata ao casamento é extremamente bem cuidada, é trancafiada nas casas etc. Não há como negar ou interpretar de outra maneira fatos tão conhecidos. Todavia, essa rigidez pode ser vista como único mecanismo existente de manutenção do sistema de casamento, que envolvia a um só tempo aliança política e econômica. Em outras palavras, nos casamentos das classes altas, a respeito dos quais temos documentos e informações, a virgindade feminina era um requisito fundamental. Independentemente de ter sido ou não praticada como um valor ético propriamente dito, a virgindade funcionava como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor econômico e político, sobre o qual se assentaria o sistema de herança de propriedade que garantia linhagem da parentela. p. 235











Mulheres no sul. Joana Maria Pedro.







O isolamento feminino nas atividades de esposa, mãe e dona de casa tornou-se forma de distinção para uma classe urbana abastada [...]. p. 285





A nova família “civilizada” que se pretendia compor deveria ser diferente daquela do restante da população: qualquer parente, além de pai-mãe-filhos, atrapalharia. Assim, a imagem da sogra passou a vir associada a características negativas na década de 80 do século XIX. p. 286





As mães, homenageadas como as responsáveis pela civilização, pelo heroísmo, pela piedade cristã dos homens, eram percebidas como estorvo ao se tornarem sogras. Além disso, não se tratava de qualquer sogra, mas a do homem, o mesmo que escrevia nos jornais. p. 287





A proclamação da República pode ser vista como o momento a partir do qual os novos modelos femininos passaram a ser mais reforçados. Esse período promoveu intensas transformações e remanejamentos nas elites que vinham se configurando no decorrer do século XIX. Muitas da imagens idealizadas das mulheres sofreram mudanças e intensificações por conta das transformações que se operaram com a Proclamação da República. p. 291





Na virada do século, as imagens das prostitutas tornaram-se as referências de como as mulheres não deveriam ser. Seus comportamentos, seu modo de falar, de vestir, de perfumar-se, eram aqueles que deveriam ser evitados pelas mulheres que quisessem ser consideradas distintas. p. 305









Psiquiatria e feminilidade. Magali Engel.





Uma das imagens mais fortemente apropriadas, redefinidas e disseminadas pelo século XIX ocidental é aquela que estabelece uma associação profundamente íntima entre a mulher e a natureza, opondo-a ao homem identificado à cultura. Retomada por um “velho discurso” que tentava justificar as teorias e práticas liberais - que, embora comprometidas com o princípio da igualdade, negavam às mulheres o acesso à cidadania, através da ênfase na diferença entre os sexos -, tal imagem seria revigorada a partir das “descobertas da medicina e da biologia, que ratificavam cientificamente a dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão lúcida, capacidade de decisão versus mulheres, coração, sensibilidade, sentimentos”. Essas considerações remetem a duas questões importantes.

A construção da imagem feminina a partir da natureza e das suas leis implicaria em qualificar a mulher como naturalmente frágil, bonita, sedutora, submissa, doce etc. Aquelas que revelassem atributos opostos seriam consideradas seres antinaturais. Entretanto, muitas qualidades negativas - como a perfídia e a amoralidade - eram também entendidas como atributos naturais da mulher, o que conduzia a uma visão profundamente ambígua do ser feminino.

No século XIX ocidental, a velha crença de que a mulher era um ser ambíguo e contraditório, misterioso e imprevisível, sintetizando por natureza o bem e o mal, a virtude e a degradação, o princípio e o fim, ganharia uma nova dimensão, um sentido renovado e, portanto, específico. Amplamente disseminada, a imagem da mulher como ser naturalmente ambíguo adquiria, através dos pincéis manuseados por poetas, romancistas, médicos, higienistas, psiquiatras e, mais tarde, psicanalistas, os contornos de verdade cientificamente comprovada a partir dos avanços da medicina e dos saberes afins. p. 332





[...] a mulher transformava-se num ser moral e socialmente perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras extremamente rígidas que assegurassem o cumprimento do seu papel social de esposa e mãe; o que garantiria a vitória do bem sobre o mal, de Maria sobre Eva. Se a mulher estava naturalmente predestinada ao exercício desses papéis, a sua incapacidade e/ou recusa em cumpri-los eram vistas como resultantes da especificidade da sua natureza e, concomitantemente, qualificadas como antinaturais. Sob a égide das incoerências do instinto, os comportamentos femininos considerados desviantes - principalmente aqueles inscritos na esfera da sexualidade e da afetividade - eram vistos ao mesmo tempo e contraditoriamente como pertinentes e estranhos à sua própria natureza. Nesse sentido, a mulher era concebida como um ser cuja natureza específica avizinhava-se do antinatural. p. 332-3





Assim, no organismo da mulher, na sua fisiologia específica estariam inscritas as predisposições à doença mental. A menstruação, a gravidez e o parto seriam, portanto, os aspectos essencialmente priorizados na definição e no diagnóstico das moléstias mentais que afetavam mais freqüentemente ou de modo específico as mulheres. p. 333





Mas se queremos mesmo dar uma guinada na história das mulheres, deslocando-a para um campo bem mais fértil e instigante da história dos gêneros, é preciso que, entre outras coisas, abandonemos definitivamente essa obsessão em buscar comprovar que a mulher é mais discriminada, é mais explorada, é mais sofredora, é mais revoltada etc., etc. Nem mais, nem menos, mas sim diferentemente. Diferenças cujos significados não se esgotam nas distinções sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado múltiplo, complexo, e muitas vezes, contraditório, das diversidades sociais, étnicas, religiosas, regionais, enfim, culturais. p. 334





Como estabelecer as fronteiras entre o normal e o patológico no mundo da sexualidade feminina que, definido nesses termos, revelava-se tão profundamente incerto? Os médicos do século XIX tomariam para si essa tarefa baseando-se em dois pressupostos: a normalidade ocuparia o espaço de uma pequena ilha cercada pela imensidão oceânica da doença; entre a água e a terra os limites seriam tão vagos e móveis quanto os definidos pelas próprias ondas. p. 340





Embora a idéia de que a mulher seria um ser assexuado ou frígido tenha sido bastante difundida entre os médicos brasileiros do século XIX, alguns deles reconheciam, explicitamente, a existência do desejo e do prazer sexual na mulher. Entre os muitos desdobramentos decorrentes da transformação do casamento em uma instituição higiênica, temos não apenas o reconhecimento, mas até mesmo o estímulo à sexualidade feminina. 33 para os médicos, a ausência ou a precariedade da vida sexual poderiam resultar em conseqüências funestas para as mulheres: como o hábito da masturbação - causador de esterilidade, aborto - ou o adultério. p. 342





Assim, a sexualidade só não ameaçaria a integridade física, mental e moral da mulher, caso se mantivesse aprisionada nos estreitos limites entre o excesso e a falta e circunscrita ao leito conjugal. Ademais, ao priorizarem o cumprimento dos deveres da maternidade (gestação. amamentação etc.) como característica indispensável da mulher saudável e incompatíveis com o pleno exercício da sexualidade, os médicos restringiriam a disponibilidade feminina para as práticas e prazeres sexuais, criando um impasse que acreditavam resolver afirmando a existência do gozo sexual através da amamentação. p. 342





Reconhecendo ou negando a existência do desejo e do prazer na mulher, os alienistas estabeleciam uma íntima associação entre as perturbações psíquicas e os distúrbios da sexualidade em quase todos os tipos de doença mental. p. 342





Cabe lembrar que entre as estratégias que fundamentariam a construção de uma ciência sexual ao longo do século XIX figurava a histerização do corpo da mulher, desqualificando-o como corpo excessivamente impregnado de sexualidade. 38

Entre os alienistas brasileiros, o caminhos percorridos pelo tema da histeria seguiram bem de perto a mesma trajetória, circunscrevendo-se em torno de duas questões-chave: a associação entre a histeria e o ser feminino; e a relação entre histeria e sexualidade e/ou afetividade. p. 343





As conquistas e sofisticações da psiquiatria na passagem do século XIX para o século XX, longe de questionarem a associação entre mulher e histeria, aprofundaram-na, conferindo-lhe status de verdade científica. Ainda por muito tempo, as palavras impetuosas do psiquiatra francês Ulysse Trélat, discípulo de Esquitol, continuariam a ecoar dentro e fora do mundo acadêmico e científico: “Toda mulher é feita para sentir, e sentir é quase histeria”. 79





Mulheres pobres e violência no brasil urbano. Rachel Soihet





Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existência. Como era grande sua participação no “mundo do trabalho”, embora mantidas numa posição subalterna, as mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade. Eram mulheres que trabalhavam e muito, em sua maioria não eram formalmente casadas, brigavam na rua, pronunciavam palavrões, fugindo, em grande escala, aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil. p. 367





Essas dificuldades se agravavam, pois muitas das idéias das mulheres dos segmentos dominantes se apresentavam fortemente às mulheres populares. Mantinham, por exemplo, a aspiração ao casamento formal, sentindo-se inferiorizadas quando não casavam; embora muitas vezes reagissem, aceitavam o predomínio masculino; acreditavam ser de sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que tivessem que dividir com o homem o ganho cotidiano. p. 367





A liberdade sexual das mulheres populares parece confirmar a idéia de que o controle intenso da sexualidade feminina estava vinculado ao regime de propriedade privada. A preocupação com o casamento crescia na proporção dos interesses patrimoniais a zelar. No Brasil do século XIX, o casamento era boa opção para uma parcela ínfima da população que procurava unir os interesses da elite branca. p. 368





A violência (masculina) surgia, assim, de sua incapacidade de exercer o poder irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência do que de força e poder. p. 370





As condições concretas de existência dessas mulheres (populares), com base no exercício do trabalho e partilhando com seus companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíram para o desenvolvimento de um forte sentimento de auto-respeito. Isso lhes possibilitou reivindicar uma relação mais simétrica, ao contrário dos estereótipos vigentes acerca da relação homem/mulher que previam a subordinação feminina e a aceitação passiva dos percalços provenientes da vida em comum. p. 377





A autonomia das mulheres pobres no Brasil da virada do século é um dado indiscutível. Vivendo precariamente, mais como autônomas do que como assalariadas, improvisavam continuamente suas fontes de subsistência. Tinham, porém, naquele momento, maior possibilidade que os homens de venderem seus serviços: lavando ou engomando roupas, cozinhando, fazendo e vendendo doces e salgados, bordando, prostituindo-se, empregando-se como domésticas, sempre davam um jeito de obter alguns trocados. p. 379





Na virada do século, o crime passional assumiu grandes proporções. p. 380





Os crimes beneficiavam-se da onda de romantismo no âmbito da literatura e da arte enfatizando o amor e a paixão. Situações desse teor eram retratadas por Tolstoi, Dostoievski, Daudet, Maupassant e D’Annunzio, cujas obras estão repletas de situações em que o amor e o ciúme aparecem como determinantes dos atos mais impulsivos. p. 381





Alguns países chegavam a adotar a norma de impunidade total em favor do marido que “vingasse a honra” ao surpreender sua mulher em adultério. No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1890, só a mulher era penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de um a três anos. O homem só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e manteúda. p. 381





Os motivos da punição são óbvios, já que o adultério representava os riscos da participação de um bastardo na partilha dos bens e na gestão dos capitais. O homem, em verdade, tinha plena liberdade de exercer sua sexualidade desde que não ameaçasse o patrimônio familiar. Já a infidelidade feminina era, em geral, punida com a morte, sendo o assassino beneficiado com o argumento de que se achava “em estado de completa privação de sentidos e inteligência” no ato de cometer o crime, ou seja, acometido de loucura ou desvario momentâneo. p. 381-82





Na prática, reconhecia-se ao homem o direito de dispor da vida da mulher. p. 382





A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento do próprio corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. Decorre daí o fato de as mulheres manterem com seu corpo uma relação matizada por sentimentos de culpa, de impureza, de diminuição, de vergonha de não ser mais virgem, de vergonha de estar menstruada etc. p. 389





Afinal, “pureza” era fundamental para a mulher, num contexto em que a imagem da Virgem Maria era o exemplo a seguir. “Ser virgem e ser mãe” constituía-se no supremo ideal dessa cultural, em contraposição à “mãe puta”, a maior degradação e ofensa possível da qual todas desejavam escapar. p. 390





Os crimes cometidos em nome da defesa da honra feminina equivaliam àqueles cometidos pelos homens, no caso da infidelidade da mulher. Percebe-se, portanto, por parte dos agentes jurídicos, uma tendência a considerar as mulheres que defendessem sua honra como merecedoras de tolerância, aceitando-se para o seu ato a justificativa do “estado de irresponsabilidade penal por privação de sentidos e inteligência”. p. 394





As defesas nos processos da mesma natureza não se pautam em aspectos essenciais: o significado da violência contra a mulher, o desrespeito à pessoa humana, à integridade individual da mulher, ao direito desta dispor de seu corpo. A defesa acentuava tão-somente a questão da honra feminina, cujo significado para a sociedade era o único relevante, um verdadeiro atentado à propriedade do marido ou do pai. p. 394-5





Além da violência física, sobre elas (mulheres populares) fez-se sentir, igualmente, a violência simbólica dando lugar à incorporação de inúmeros estereótipos. Em boa parte das situações essas mulheres desenvolveram táticas com vistas a mobilizar para seus próprios fins representações que lhes eram impostas, buscando desviá-las contra a ordem que as produziu; ou seja, definiram muitos de seus poderes por meio de um movimento de reapropriação e desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina contra o seu próprio dominador. Isso se evidencia nos casos de crimes contra a honra. p. 398





Escritoras, escritas, escrituras. Norma Telles



É preciso ressaltar o papel fundamental desempenhado pelos produtos culturais, em particular o romance, na cristalização da sociedade moderna. Escrita e saber estiveram, em geral, ligados ao poder e funcionaram como forma de dominação ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos esperados em determinadas situações. p. 401-2





O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição. p. 403





A situação de ignorância em que se pretende manter a mulher é responsável pelas dificuldades que encontra na vida e cria um círculo vicioso: como não tem instrução, não está apta a participar da vida pública, e não recebe instrução porque não participa dela. p. 406





O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em ações políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações das mulheres armadas, em geral, denunciam a incapacidade feminina para a luta, física ou mental, donde concluem que as mulheres são incapazes para a política, ou que esse tipo de idéia é apenas diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair. p. 407





Ao mesmo tempo que se pregavam valores burgueses, eram reforçados preconceitos de classe e raça. p. 429





Os higienistas empenharam-se com afinco na tarefa de formar a “mãe burguesa”. Empreenderam campanhas para convencer as mulheres a amamentar. Visavam também à “mãe educadora” sob vigilância do médico de família. Definiam a mulher como ser afetivo e frágil. Doçura e indulgência eram atributos que se somavam aos anteriores para demonstrar a inferioridade da mulher, cujo cérebro, acreditavam, era dominado pelo capricho ou instinto de coqueteria. Para que não adoecesse, era preciso que aceitasse o comando do homem e se dedicasse inteiramente à maternidade e à família. As mulheres pobres, as vendedoras de rua, as lavadeiras vão sendo expulsas do centro, que se afrancesa, e de seus ofícios de sobrevivência. p. 429





Em nome do perigo venéreo, domesticam (os médicos) a sexualidade feminina. p. 429





Durante o Império, e mais ainda no início do período republicano, a medicina higiênica tem um caráter de polícia médica. É dessa medicina que surgirá, entre nós, a psiquiatria. Desde o início a medicina institucional, em suas várias formas, pretendia interferir no “organismo social”, cuidar da saúde da cidade e dos indivíduos. A versão psiquiátrica nacional era nitidamente autoritária, permeada pela noção de progresso dos positivistas. Assim, irá perseguir aqueles que resistem às disciplinas para a normalização. Artistas e intelectuais, em especial, serão objeto de desconfiança e considerados problemas potenciais pelos alienistas. p. 430





Nas últimas décadas do século XIX, surge um novo tipo de personagem, a histérica. Os romances fazem estudos de temperamento que mais parecem relatos de enfermidades ou diagnósticos. Descrevem ‘casos de alcova’, temperamentos patológicos. O médico aparece com a palavra na literatura; as personagens passam a evidenciar uma obsessiva medicalização da linguagem. Quanto mais a personagem do médico discursa, dá aulas, mais aumenta sua credibilidade e sedução. Em geral, as personagens histéricas são enfermas, órfãs de mãe, e é sugerido que a causa da enfermidade é a quebra do quadro familiar. A cura está no casamento, na procriação, na aceitação das normas institucionalizadas. Os traços que estigmatizam a histérica na sociedade da família, do casamento e da maternidade higienizada são sua orfandade, isto é, a falta de um modelo feminino e o fato de serem solteiras e fogosas.

O médico, através de suas citações científicas, é que descobre o “temperamento doentio”, duplamente faltoso, um espaço a ser preenchido por seus discursos infindáveis. As histéricas quase não falam, os médicos falam por elas e só lhes resta reproduzirem os sintomas. Resultado: desmaios, enxaquecas e gritos. A mulher letárgica é socorrida pelo médico, e, mesmo que ela morra, o doutor permanece cercado de uma aura de sabedoria.

A despeito de muitas vozes contrárias, o mito da fragilidade feminina, da incapacidade física ou mental da mulher, floresceu ainda neste final de século. p. 430-1













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