Faramarz Beheshti: "Vi uma iraniana segurando uma bola de rúgbi. Achei que seria incrível fazer um filme"

O cineasta iraniano registrou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no Irã para praticar um esporte tipicamente masculino – o rúgbi. Por meio do esporte, o filme conta as restrições vividas pelas mulheres no país


RAFAEL CISCATI




Cena do filme Salam Rugby. As mulheres são obrigadas a usar várias

camadas de roupa para jogar. (Foto: Divulgação)





O documentarista Faramarz Beheshti morava na Nova Zelândia, em 2006, quando, por acaso, encontrou uma foto curiosa de seu país natal, o Irã: uma mulher jogando rúgbi. "Imediatamente, pensei que seria incrível fazer um filme a respeito", diz. Extremamente vinculado à imagem de bruto e viril, o rúgbi é pouco praticado por mulheres ao redor do mundo. E menos ainda no Irã, uma teocracia islâmica onde as mulheres enfrentam crescentes restrições às práticas esportivas.

Com isso em mente, Beheshti filmou Salam Rugby (algo como "Olá, Rúgbi"), lançado em 2010. Fruto de dois anos de trabalho, o filme conta a história das poucas mulheres que jogam rúgbi no país e as dificuldades que enfrentam para praticar o esporte. E busca discutir uma questão maior: “Ele fala de rúgbi, mas fala também da situação de desigualdade imposta às mulheres iranianas pelas leis introduzidas com o advento da República Islâmica em 1979”, diz o cineasta.

Cena do filme Salam Rugby. As mulheres são obrigadas a usar várias camadas de roupa para jogar. (Foto: Divulgação)

A história do rúgbi iraniano remonta aos anos 1920, quando o esporte foi introduzido no país por funcionários de uma companhia de petróleo britânica. O número de adeptos sempre foi pequeno. Em 2004, no entanto, o órgão governamental responsável pelo esporte feminino organizou uma aula introdutória à modalidade – 24 mulheres compareceram. Desde então, cerca de 1000 mulheres já tiveram contato com o rúgbi no país, mas poucas puderam continuar a jogar.

Desde a Revolução Islâmica, em 1979, uma série de restrições passou a pesar contra as mulheres em diversos campos. As leis do país determinam que o depoimento de uma mulher tem metade do valor jurídico do depoimento de um homem; em caso de separação, a mulher jamais detém a guarda dos filhos; caso se envolva em um acidente de trânsito, a mulher nunca tem direito à indenização, ainda que não seja a responsável pelo incidente. Mesmo assim, por anos as mulheres iranianas desfrutaram de maior liberdade que as mulheres em outros países do Golfo Pérsico: as iranianas podem dirigir, praticar esportes e, ainda hoje, são maioria no ensino universitário. Além disso, são vaidosas: usam maquiagem e buscam formas mais criativas de usar o véu, deixando uma caprichosa franja exposta.

Segundo Beheshti, a situação se agravou a partir de 2004, com a ascensão de Ahmadinejad ao poder: “Quando Ahmadinejad foi eleito pela primeira vez [ em 2004], ele e Khamenei (líder supremo do Irã) decidiram começar um radical programa de ‘talibanização’, sem mencionar isso oficialmente”, diz Beheshti. A presença de mulheres em cargos públicos diminuiu, e sua presença em locais de competição passou a ser regulada, e completamente proibida em caso de competições masculinas.
Human Rights Watch pede que a Arábia Saudita seja banida dos Jogos de Londres Arábia Saudita desiste de enviar mulheres para os Jogos de Londres Os treinos de rúgbi passaram a ser monitorados e realocados para horários desagradáveis – muito cedo durante o inverno, ou ao meio-dia, no verão – quando homens não são autorizados a entrar no campo. Isso quase inviabiliza as competições e desestimula a prática do esporte – um dos times retratados por Beheshti disputou apenas duas partidas em sete anos de existência. Além disso, a parafernália usada durante as partidas não ajuda. Além do véu, a mulheres não podem mostrar qualquer nesga de pele das pernas e braços: “Nós usamos tanta roupa que mal dá para apanhar a bola”, diz uma das jogadoras.

Tais práticas discriminatórias entram em conflito com o passado persa do país, ainda parcialmente preservado no imaginário nacional. Segundo Beheshti, a sociedade persa era originalmente matriarcal e, ao longo da história, as mulheres ocuparam lugar de destaque na administração do poder. Além disso, os persas foram os criadores do cilindro de Ciro – um decreto imperial diversas vezes descrito como a primeira carta de direitos humanos da história, datando do século 6 a.C.

A atual truculência, portanto, provoca protestos: “Somos iranianos, com uma cultura de milhares de anos. Nós não vemos o outro sexo como presas sexuais. Foi a isso que meu país se reduziu?”, diz um dos treinadores de rúgbi entrevistado por Beheshti, obrigado a se afastar de sua equipe sob a acusação de promover a prostituição.

Em entrevista a ÉPOCA, Beheshti conta como foi filmar no Irã e critica o regime em voga. E diz que quer voltar a gravar no país: "Ainda desejo repetir a experiência, porque o Irã é um país muito bonito e os iranianos são, no geral, um povo muito amável".



ÉPOCA - Você chegou a dizer que seu filme não é “apenas um filme sobre rúgbi”. De que ele fala?

Faramarz Beheshti - Ele fala de rúgbi, mas fala também da situação de desigualdade imposta às mulheres iranianas pelas leis islâmicas introduzidas com o advento da República Islâmica em 1979.



ÉPOCA - Como surgiu a ideia de fazer o filme?

Faramarz Beheshti - Em 2006, vi uma imagem na internet de uma mulher iraniana segurando uma bola de rúgbi. Na época, eu vivia na Nova Zelândia e, imediatamente, pensei que seria incrível fazer um filme a respeito.



ÉPOCA - Quantas mulheres iranianas praticavam rúgbi na época?

Faramarz Beheshti - Cerca de mil mulheres tiveram contato com o esporte. Mas, quando Ahmadinejad chegou ao poder, as restrições aumentaram e os números começaram a cair. Várias províncias tiveram seu time desarticulado, como contou um treinador da cidade de Mashad. E a mesma coisa aconteceu em outras cidades, incluindo Teerã. Quando Ahmadinejad foi eleito pela primeira vez (2004), ele e Khamenei (líder supremo do Irã) decidiram começar um radical programa de “talibanização”, sem mencionar isso oficialmente. O modus operandi adotado incluía fazer acusações falsas em cada cidade, e usá-las como desculpa para fechar os treinos temporariamente. Isso é dito no filme, por diversas pessoas envolvidas no rúgbi, como os treinadores das cidades de Gorgan e Mashad, e por uma senhora da cidade de Esfaham, onde os treinos de rúgbi nunca mais foram autorizados.



ÉPOCA - No filme, as mulheres falam sempre das “forças de segurança”. A que elas se referem? Os treinos são sempre monitorados?

Faramarz Beheshti - A força de segurança mencionada no filme é a Herasat, uma divisão no interior do aparato de inteligência, que tem o dever oficial de proteger as instalações e edifícios do governo, e também seu perímetro. No Irã, esse aparato de segurança ganhou imenso poder e, como resultado, julga-se dono de um poder muito superior ao seu dever oficial. Quando Ahmadinejad começou sua campanha de “talibanização”, a Herasat exerceu papel fundamental na implementação das políticas adotadas. Foi a Herasat que começou os rumores de que o rúgbi era imoral.



ÉPOCA - Alguns treinadores foram proibidos de trabalhar e mesmo acusados de promover a prostituição. O que a Sharia (código de leis do Islamismo) diz a respeito do contato entre homens e mulheres?

Faramarz Beheshti - A Sharia é baseada em uma interpretação pessoal e nos eventos que cercaram a vida tribal do profeta Maomé, na Suna, na tradição. E essa é uma crescente fonte de problemas, em minha opinião. Porque ela tem sido considerada uma ordem direta de Deus, algo com o que não concordo. Há vários casos, por exemplo, em que sentenças de morte e outras punições bárbaras são tomadas como uma expressão da lei divina. Mas, se você ler o Corão, em vários versos fica muito claro que apenas Deus pode dar e tomar a vida. Para tornar essa ideia mais próxima da sua cultura, podemos dizer que o que vemos hoje é comparável à época em que o Vaticano controlava o mundo católico, e a Inquisição era justificada com argumentos divinos, o que resultou em crimes contra a humanidade.



ÉPOCA - Apesar das restrições impostas pela República Islâmica, as mulheres no Irã parecem usufruir de maior liberdade que aquelas vivendo em outros países do Golfo, como a Arábia Saudita. Quão livres são as mulheres iranianas para praticar esportes e conduzir suas próprias vidas? As coisas estão piorando?

Faramarz Beheshti - Historicamente, a sociedade persa era uma sociedade matriarcal, na qual as mulheres gozavam de grande liberdade e respeito. Se você estudar nossa história, verá que muitas mulheres foram líderes e ocuparam posições de comando. Em tempos modernos, elas usufruíram de direitos iguais aos dos homens e, em 1959, a Lei de Proteção à Família garantiu sua emancipação. Foi apenas a partir de 1979, com o advento do regime islâmico, que esses direitos começaram a desaparecer. Nos últimos 30 anos,elas viram aqueles direitos serem tremendamente reduzidos. A sharia, como introduzida em 1979, elimina o status das mulheres como seres humanos com direitos iguais, reduz as mulheres a escravas, dominadas por homens. O que mencionei em meu filme sobre a legislação no Irã (o depoimento de uma mulher, por exemplo, tem metade do valor do depoimento de um homem) não foi inventado por mim: são leis que de fato fazem parte da República Islâmica. As coisas pioraram, e devem piorar ainda mais, caso o sistema não seja mudado.



ÉPOCA - Salam Rugby foi seu primeiro filme. Quais foram as principais dificuldades que você enfrentou?

Faramarz Beheshti - Minha própria falta de experiência, e a neve que cobriu o Irã nos invernos de 2007 e 2008 e me forçou a parar a produção completamente por mais de seis meses. Viajar pelo Irã também não é fácil: você precisa ter seu próprio carro, o que eu obtive no segundo ano de filmagens. Obter as permissões da polícia para filmar também foi um desafio que precisei enfrentar muitas vezes. Mas, geralmente, a Federação de Rúgbi cuidava de pedir as autorizações.



ÉPOCA - Você nasceu no Irã, mas vive no exterior. Como foi voltar ao seu país para filmar?

Faramarz Beheshti - Foi bastante complicado no começo, porque o Irã tem uma legislação rígida em relação à produção de filmes. Foram necessários quase cinco ou seis meses até que eu encontrasse o caminho. No fim, eu só pude fazer o filme porque fui ajudado pelo pessoal da Federação Iraniana de Rúgbi, que assegurou todas as autorizações exigidas em troca de 2 anos de trabalho gratuito. Na verdade, tenho duas vezes mais material sobre rúgbi masculino do que feminino. Foram necessários dois anos e meio para fazer esse filme, mas preciso dizer que foram os melhores momentos da minha vida: pude ver meu país querido de uma maneira como nunca o havia visto. Ainda desejo repetir a experiência, porque o Irã é um país muito bonito e os iranianos são, no geral, um povo muito amável.



ÉPOCA – Como o filme foi recebido pelo público no Irã?

Faramarz Beheshti: Não pude voltar ao Irã desde que terminei as filmagens, então não sei o que os iranianos pensaram a respeito. Mas acho que esse é um filme que pode ser mais apreciado pelo público de fora do país.



ÉPOCA - Você acha que o rúgbi feminino no Irã ainda pode crescer?

Faramarz Beheshti - Quem sabe? Os sinais vindos do Irã dizem o contrário agora. Agora, estão até mesmo criando restrições para o acesso das mulheres ao ensino superior.

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/05/faramarz-beheshti-vi-uma-iraniana-segurando-uma-bola-de-rugbi-achei-que-seria-incrivel-fazer-um-filme.html acesso em 20 de maio
UM FILME, UMA HISTORIA, UMA LUTA COINSTANTE.
MULHERES OCIDENTAIS NEM IMAGINAM PASSAR POR ISSO.
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EU AGUARDO

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