Carnaval A festa da inversão da ordem
Entrevistas
Sonia Maria Giacomini
Pesquisadora da PUC-Rio fala sobre o carnaval como a festa da inversãoPor Patrícia Mariuzzo e Ana Paula Morales
Trazido pelos imigrantes portugueses para o nosso país, o carnaval se transformou na maior festa brasileira e em um dos eventos mais conhecidos no mundo, certamente um dos que mais atrai turistas estrangeiros. Falar em carnaval é falar em Brasil e, assim como acontece com o futebol, a festa é um dos elementos constituintes da nossa brasilidade. É sobre esse e outros aspectos do ritual carnavalesco que a pesquisadora e professora Sonia Maria Giacomini, da Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro (PUC-RJ), fala nesta entrevista concedida para a revista Pré-Univesp. “Estudar o carnaval é um meio de conhecer traços importantes da sociedade brasileira”, diz. Segundo a pesquisadora, o carnaval é a festa da inversão e isso tem significados específicos no contexto brasileiro.
Pré-Univesp: O carnaval ajudou de alguma maneira a formar a identidade brasileira?
Sonia Giacomini: O carnaval tem origem no calendário religioso. É uma festa medieval. Mas, sem dúvida, no Brasil o carnaval tem uma vida própria, uma aura particular. Um teórico que chamou a atenção para isso de modo muito perspicaz foi Roberto da Matta, em especial no livro Carnaval, Malandros e Heróis (1979). Ele explica que o carnaval seria uma chave para entender a sociedade brasileira, já que a festa tematiza elementos fundamentais dessa sociedade. Não por acaso, em toda propaganda sobre o Brasil, o carnaval e o futebol estão presentes. E o que eles têm em comum? Antes de qualquer coisa, o corpo. O corpo está no centro da cena tanto no futebol quanto no ritual do carnaval. Mesmo tendo origem no calendário religioso, o carnaval é uma festa do corpo, uma festa profana. E, em um país que tem uma forte tradição cristã e católica, essa festa do corpo – uma parte maldita, que envelhece, apodrece e que está em oposição à alma – fortalece.
Pré-Univesp: A imagem do Brasil se confunde com uma imagem de erotismo e prazer. Até que ponto o carnaval contribui para essa imagem e até que ponto os próprios brasileiros se enxergam dessa forma?
Sonia Giacomini: Para mim não há dúvida de que o carnaval inspira e celebra isso. Como um espelho, ele faz o povo brasileiro se reproduzir dessa maneira, com esse foco na sensualidade e no erotismo. É uma marca do brasileiro. Aqui o corpo tem um lugar diferente do que na sociedade europeia, mesmo nos países ibéricos, que estão mais próximos de nós por conta da colonização. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, isso chama muito a atenção. Existe um grande culto ao corpo, principalmente de uns 20 anos para cá: esse corpo bronzeado, sarado que o carioca desfila com uma roupa que serve para valorizá-lo ainda mais. A roupa não é para esconder o corpo, mas para mostrá-lo. É mais uma maneira de exibir o corpo. O carnaval é uma festa onde esse corpo está no centro e, antes de tudo, o corpo feminino. É uma festa de inversão, onde o homem pode se vestir de mulher. O carnaval é uma festa de exibição do corpo feminino, de exibição da mulher, com viés erótico, não o da pureza ou da maternidade, características também ligadas ao feminino.
Pré-Univesp: O carnaval é uma celebração na qual o brasileiro fala de si mesmo de uma forma positiva, ressaltando virtudes como a alegria e a criatividade. Seria esta uma festa na qual mostramos uma sociedade alternativa, tal como gostaríamos que ela fosse, e não de fato como ela é?
Sonia Giacomini: O brasileiro celebra o que ele acha que pode ser uma contribuição brasileira para o mundo. Não por acaso atrai tantos turistas. Tentamos “vender” para o mundo a visão de uma sociedade essencialmente criativa e alegre. É claro que existe aí uma dose de utopia. Ser conhecido e admirado pelo carnaval tem como contrapartida outros atributos que não são muito positivos. Como eu disse antes, o carnaval é a festa da inversão, é o avesso da ordem. São 362 dias de ordem e três dias de desordem. Se nós somos tão bons assim no carnaval é porque não somos tão bons assim nos outros dias do ano. É como se, no carnaval, estivéssemos no nosso elemento principal. Se nós somos tão bons na inversão, isso pode significar que não somos bons na norma.
Pré-Univesp: Em que aspecto o carnaval estabelece relação com o cotidiano brasileiro?
Sonia Giacomini: Todos os anos, vemos máscaras de personagens do cotidiano – figuras da política, celebridades – desfilando nos carnavais do país todo. É uma forma de trabalhar o cotidiano com sátira e humor, com jocosidade e criatividade, mas com ironia. Enquanto festa, o carnaval é uma quebra da rotina. Ele tem uma lógica própria, como se o tempo ficasse em suspenso. Vários atores da literatura falaram sobre isso. Jorge Amado é um dos que mostram o carnaval como um tempo excepcional. A rotina entra como elemento da vida “real”, mas com aura especial. As personagens ganham outra interpretação. Elas serão sempre uma alegoria. Mesmo quando pega elementos da vida cotidiana, o carnaval os transforma, como em um ritual, que possibilita inventar coisas que não são permitidas no cotidiano. Ele subverte, vira do avesso, em um tipo de uma inversão permitida.
Pré-Univesp: A origem do carnaval está ligada ao calendário católico, que criou a Semana Santa e, antes dela, um período de jejuns e privações. Assim, antes de começar o período da Quaresma, veio o carnaval, uma festa para celebrar os prazeres da carne, da bebida, uma festa de excessos antes das privações impostas pela igreja. Como fica essa relação na pós-modernidade, quando estamos condenados ao prazer sem fim? O carnaval continua tendo essa função ou é mais uma festa dentre tantas: é só mais uma forma de prazer?
Sonia Giacomini: Em certo sentido, existe uma banalização do carnaval também. Ele fica menos marcado. Como ele é uma festa da inversão, ele está diretamente associado ao que é ordem. Se a ordem não é tão ordeira assim, a desordem não pode ser tão marcada. Ela precisa dessa contrapartida. O carnaval é uma oposição, é uma quebra da ordem e, se a ordem não é marcada, ele também não pode ser. Na contemporaneidade, como nos diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman1, tudo é muito instantâneo. As soluções são imediatas. As relações são provisórias e efêmeras. Sem dúvida, o carnaval acompanha essas mudanças no sentido de uma banalização, como se fosse carnaval todo dia.
Pré-Univesp: Ao mesmo tempo em que considerada uma festa popular e democrática, onde as pessoas das mais diversas classes sociais são permitidas e se permitem festejar, o carnaval também revela contrastes e desigualdades. O que acontece, no carnaval, com os eixos hierárquicos presentes no cotidiano da nossa sociedade?
Sonia Giacomini: Durante o carnaval temos muitos espaços. No carnaval de rua, do bloco, temos um espaço de todos, público, mas tem a festa privada, no clube. Temos o trio elétrico em Salvador, mas tem o abadá, que é caríssimo. Então a festa é mais aberta ou mais fechada a todos dependendo do espaço. Ela reproduz hierarquias também. Embora o espírito do carnaval seja o da festa do encontro, onde cada um vai experimentar o que quiser como em uma brincadeira de ser outro, uma brincadeira de onde as pessoas saem renovadas, ele opera uma mágica. No entanto, eu não vejo o carnaval como uma festa onde as hierarquias estão completamente apagadas. As barreiras permanecem. Os lugares sociais continuam marcados. Essa ideia do carnaval como suspensão das hierarquias existe até certo ponto, mas a realidade social é muito impositiva: não há como abstrair completamente a desigualdade.
fonte http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/2954/sonia-maria-giacomini.html acesso em 21 de fevreirio
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