OS DIFERENTES PAPÉIS DA MULHER BRASILEIRA NO SÉCULO XIX

OS DIFERENTES PAPÉIS DA MULHER BRASILEIRA NO SÉCULO XIX






Sociedade patriarcal em constante mutação em inúmeros segmentos. Sociedade dominada pelo homem que fez da mulher criatura diferente, ofuscando suas qualidades e habilidades. Sim, exigia-se beleza dela, para Gilberto Freire[1], uma beleza mórbida, quase doentia que oscilava entre o tipo franzino e a senhora gorda.

O Brasil do século XIX regia as regras sociais para a mulher através da diferenciação dos sexos. Diferenciação dos sexos onde o padrão duplo de moralidade privilegiava o homem no que se referia absolutamente a tudo.

Um país basicamente rural começava a ingressar em nova fase durante o século XIX, convivência entre a estrutura escravista e as primeiras praticas capitalistas, alguns lugares incorporaram com maior rapidez as inovações que chegavam, iluminação a gás, bondes puxados a burro, os primeiros protótipos das lojas comercias, modernidade convivendo com escravos perambulando nas ruas dos centros urbanos e rurais.

Mudanças estruturais, conjunturais e comportamentais. O comportamento feminino ia mostrando características que incomodavam os conservadores, na verdade quase toda uma sociedade conservadora. Mary Del Priore [2] observa que, com essas mudanças vinham também idéias expostas em obras literárias que influenciavam as relações entre os sexos, homens e mulheres não tinham a mesma vocação e essa diferença é que fazia a felicidade de cada um. Inspirado no romantismo francês o debate que circulava entre os sexos era coberto de metáforas religiosas, possuir pudor era requisito indispensável para entrar na categoria de Santa.

O cotidiano dessas mulheres durante o século XIX baseava-se nos afazeres domésticos, muitas delas não tinham interesse para a instrução, a consciência de mudança através do conhecimento era quase inexistente, quase.

Mal entravam na adolescência já estavam se preparando para casarem-se , com vinte e poucos anos já eram cercadas de filhos. Tudo poderia ou acontecia durante a missa dominical, ponto de encontros de muitos namoros, olhares, desejos. A proximidade entre os opostos era permitida em nome de “Deus”, a missa servia como desculpa para muitos cochichos e piscadelas.
As moças das áreas rurais também faziam desse evento social, a missa, um momento de liberdade para conquistar e deixarem-se ser, iam atraentes para impressionar, um verdadeiro jogo de sedução mútua, o momento era único e somente semanal, pois fora do contexto da missa, era raro o momento em que homens e mulheres podiam falar-se.



Aliás, raros momentos sim, mas sempre davam um jeitinho de fazê-lo, utilizavam-se de vários artifícios, bilhetes, olhares, sacadas de janelas, notas de jornais.

Os romances literários rondavam os pensamentos das moças, romances que instigava o desejo de escolha do amor verdadeiro, ficavam nas entrelinhas, a escolha do amor verdadeiro nesse momento ainda pertencia ao patriarca.

Os diferentes papéis da mulher brasileira durante o século XIX vão surgindo lenta e distintamente, desde pequenas as moças recebiam uma forma de educação diferenciada dos meninos. As negras ficavam isentas desse processo sistemático de escolarização, para essas meninas escravas a educação acontecia no dia a dia, na violência do seu labor, na luta pela sobrevivência, na resistência, na fuga, mesmo após o fim da escravidão não vimos resultados concretos, diretos e imediatos que proporcionassem oportunidades de ensino para os negros libertos.

Guacira Lopes Louro[3] diz que para as meninas índias e pobres a situação era semelhante, escolas públicas não recebiam as descendentes indígenas, para elas a ação religiosa como instrumento de educação serviu de certa forma para apagar a identidade, moldar uma nova, sem força.

As meninas pobres estavam desde muito cedo envolvidas nas tarefas domésticas, no trabalho da roça, no cuidado com os irmãos menores, essas tarefas tinham prioridade, eram maiores do que a escolarização.

Para as filhas dos grupos sociais privilegiados, o ensino da leitura, da escrita e das noções básicas de matemática vinha acompanhado das aulas de piano, francês, aulas que eram ministradas em suas próprias casas ou em escolas religiosas. Eram incentivadas para desenvolverem habilidades domésticas que incluía domínio com a agulha, culinária, bordados, rendas, mando das criadas, domínio da casa. Para muitos grupos dessa sociedade do século XIX, as mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas, não havia a necessidade dela obter conhecimentos além daqueles que ajudasse a consolidar a sua moral e os bons princípios, o que contava não eram seus desejos ou necessidades, mas sim sua função social, o pilar de sustentação do lar.

As últimas décadas do século XIX apontam para a necessidade de educação para a mulher, vinculando-a a modernização da sociedade, a higienização da família, a construção da cidadania dos jovens, a educação feminina deveria permanecer sobre a égide e influencia cristã, quer dizer, católica.

A família brasileira conviveu com uma diversidade de modelos durante este século de tantas metamorfoses, ela tinha que se amoldar ao progresso e inovações que batiam as suas portas, se transformavam de acordo com tensões, conflitos, conjunturas demográficas, econômicas e culturais. A família patriarcal se revestia de
aura de harmonia, como se naquele momento esses lares fossem únicos portos de paz, no entanto sabemos que não eram assim e que não há esquema linear de evolução da família brasileira, havia sim, uma forte resistência e adaptação a inclusão de novos conceitos e paradigmas, principalmente ao que se referia à emancipação feminina em diversos anglos.

Há centenas de exemplos no século XIX de mulheres que souberam dizer o que queriam e pensavam de Nízia Floresta, passando por Augusta Candiani, Ana Jacinta de São José, Chiquinha Gonzaga e inúmeras heroínas anônimas, tantas Marias, Antonias, Josefas, Franciscas, tantos nomes, rostos e atitudes conhecidas ou não, que foram mostrando para este modelo de sociedade que resistia e reprimia a aceitação de suas transformações, essas tantas mulheres souberam dizer sim ao abolicionismo, ao republicanismo, a importância da educação feminina, ao divorcio, souberam dizer não à exclusão que consideravam injusta, lutando por uma emancipação que tivesse relação direta com a modernidade e a democracia.

Utilizavam recursos como a escrita e a palavra para se tornarem visíveis a vida pública, adquirir instrução suficiente para ter acesso à vida profissional constituiu não somente no século XIX, mas desde o inicio da nossa história uma luta que mobilizou mulheres de diferentes camadas sociais.

Mulheres que foram abrindo brechas e tomando para si poderes, antes só permitido ao homem, ampliando fronteiras, desconstruindo os destinos premeditados, fragmentando o contentamento com sua propalada inferioridade física e mental, colocaram para fora sua inteligência e energia em espaços privados e públicos, ultrapassaram obstáculos que não nasciam apenas das representações de uma sociedade machista, mas das árduas condições de vida que tiveram de enfrentar, encontraram formas variadas de ser e pensar.

José Murilo de Carvalho[4] observa que a representação da mulher como símbolo da liberdade, não era uma alegoria muito presente entre os republicanos brasileiros, segundo ele, no Brasil a figura feminina ligada a República foi a da mulher pública, a prostituta, utilizada pelos caricaturistas da época para representar a desilusão com o novo regime, o autor diz que a visão da República como prostituta é evidente e difundida por diversos autores da época. Comparando a representação da mulher na República francesa com a brasileira, o autor ressalta que na França as mulheres representaram papel real nas revoluções que começaram em fins do século XVIII e adentraram o XIX e que o uso simbólico da imagem feminina seria uma compensação para sua exclusão real por parte dos homens, esse símbolo tem certamente a ver com a mulher do povo que se envolve nas lutas políticas, no Brasil oitocentista e copiador de quase tudo da França, vê-se uma situação antagônica, não havia povo político masculino, muito menos feminino, esse simbolismo feminino falhava dos dois lados, para José Murilo de Carvalho[5] do significado no qual a República se mostrava longe dos sonhos de seus idealizadores, e do significante no qual inexistia a mulher cívica, tanto na realidade como em sua representação artística.Talvez isso explique a ridicularização da alegoria feminina por pessoas que no inicio apoiaram o novo regime, mas nada de diferente se via.

As mulheres brasileiras do século XIX depararam-se com o estabelecimento de uma política jurídica, médica e política, preocupada com a formação de trabalhadores e cidadãos sadios, moral e sexualmente. A vida sexual e amorosa de toda a população e não só dos mais bem situados passava a ser uma preocupação dos governantes e um assunto de interesse público em função da necessidade de se cuidar da educação das gerações futuras e dos caminhos da construção de uma nova sociedade, nesse momento segunda metade do século XIX, sobre a ideologia positivista que pregava a “ordem e progresso”, o trabalho, as regras ligadas a higiene social, costumes ordeiros, as mulheres mais do que nunca deveriam assumir as tarefas do casamento, da maternidade e da educação dos filhos. Esse modelo de vida social, sexual e amorosa com padrões de honestidade e moralidade era recomendado para as mulheres que pertenciam às famílias mais abastadas, as mulheres que poderiam freqüentar o espaço público deveriam fazer de forma educada, eram elas a base moral da sociedade e as responsáveis pela formação de uma decência saudável, eram desobrigadas de qualquer trabalho produtivo.
Para as mulheres das classes populares, em particular as negras, indígenas, descendentes, mulatas, mestiças, ficava a preocupação de juristas, médicos e políticos, para estes, elas eram portadoras de vícios da pobreza, da escravidão, tinham tendências a ociosidade, não valorizavam os laços familiares, o casamento e a honra, para muitos juristas da época seria um desafio implantar esses conceitos de valores para uma camada da população que era arraigada de sexualidade, sensualidade, explicadas muitas vezes pela influencia do clima tropical e de tamanha mestiçagem.

Os olhares que vinham de cima impunham para as meninas pobres a existência de outras versões de moralidade, essas meninas evidenciavam a impossibilidade ou o fracasso de uma política de controle sexual e moral. O casamento para elas não tinham o mesmo sentido imaginado e desejado por moças que pertenciam a outros segmentos sociais e diferentes mundos culturais, não era o único local para as relações sexuais e afetivas, não tinham apenas um fim procriativo, a virgindade e a honra para as meninas pobres não eram tão imprescindíveis, poderiam encontrar outros parceiros e estabelecer firmes relações de amasiamento, essa diferenciação de postura, estava relacionada com uma organização familiar muito comum no Brasil de tantas diferenças

Sim, existiam em pleno século XIX mulheres solteiras, sozinhas, separadas ou viúvas, que viviam sós com suas filhas e filhos, que acabaram se transformando em companheiros de trabalhos domésticos e rurais, fora do lar ou autônomos, lavandeiras, costureiras, doceiras, quitandeiras, não podemos dizer que havia o predomínio da família nuclear, mas havia uma rede de apoio entre parentes e vizinhos com a moral familiar e bisbilhotavam a vida dos mais próximos, interferindo ao ponto de causarem uma queixa a uma possível desconfiança de defloramento, assunto muito debatido em suas rodas de conversas.
Na maioria dos casos as moças pobres que sofriam inúmeras violências morais e físicas, como a perca da virgindade e a difusão desse fato, abalando drasticamente a sua honra, eram incentivadas por familiares ou amigos mais próximos, como padrinhos e tios, para apresentar queixas nas delegacias, não encontravam nos braços do poder jurídico as soluções que ansiavam, claro que muitas moças pobres do século XIX, a virgindade, o casamento, a honra, eram valores que deveriam ser alcançados, mas se não alcançassem, devido aos entraves de suas vidas, e muitos eram eles, não seria o fim, nem a eterna infelicidade, seus costumes e condições de sobrevivência apresentavam-se com maior força diante dessas desilusões.

É o século de um aumento significativo de enjeitado, filhos abandonados por elas, mulheres mães, que se desfaziam de suas proles. Abandonavam meninos e meninas com dias ou meses de vida, segundo Renato Pinto Venâncio[6], eram deixados em calçadas, praias, terrenos baldios, conhecendo por berço monturos e lixeiras e tendo por companhia cães, porcos e ratos.

Para o autor era a negação da maternidade, mulheres que negavam a maternidade, que causavam indignação e perplexidade em uma sociedade alicerçada nos dogmas do catolicismo.

É válido salientar que essa negação da maternidade era comum as mulheres dos centros urbanos, para as mulheres do meio rural, era uma atividade incomum, pois os filhos eram mais braços para contribuírem para o sustento familiar. Meninos e meninas desempenhavam desde cedo alguma função produtiva ou de apoio.

Diferentes do território rural brasileiro, nos centros urbanos o trabalho infantil não tinha muito valor, as atividades artesanais e portuárias exigiam certo conhecimento e muita força física, e o mais relevante, nos campos existiam muitos pobres e poucos miseráveis, situação oposta acontecia nos centros das cidades que se desenvolviam e se urbanizavam rapidamente. Os filhos dessa legião de miseráveis e desclassificados sociais conheciam o cruel caminho do abandono, acrescentado a outras razões, como medo por parte de mulheres, mesmo de classe abastada por terem vivido amores proibidos, que deixaram frutos, bastardos que eram registrados como enjeitados e abandonados.
Para o autor a escravidão e a miséria deixaram séculos de instabilidade doméstica, assim, dentro desse contexto social vimos emergir um modelo familiar frágil e sem aparato do Estado, as famílias pobres encontraram meios para tentar salvar seus filhos, através de métodos de abandono, que em muitas vezes eram gestos de ternura e cuidados, mulheres escravas, libertas e pobres sem perspectivas, burlavam e bestificavam a sociedade oitocentista com ações que aparentemente eram desumanas.
Quando direcionada uma ótica para as transformações sócio-educacionais propagada pelo Estado para a construção da profissão de ensino, durante o século XIX, vemos uma ocupação considerável de mulheres.
Helena Costa G. Araujo[7] ressalta que a mulher foi conduzida para postos subalternos de pior remuneração, maior instabilidade e exigindo menores qualificações, a força de trabalho feminina foi sistematicamente afastada de posições de chefia, mas segundo a autora, ao mesmo tempo verifica-se que determinadas áreas foram predominantes ocupadas ou por mulheres ou por homens e o ensino foi um dos setores que visivelmente desde fins do século XIX a participação feminina foi ganhando campo, dava seus primeiros passos, apesar de a imagem tão fortemente propagada na sociedade, do professor (homem) como sacerdote da democracia, não podia, pois, ser perseguida por elementos femininos, questões biológicas impediam as mulheres de desempenhar o papel prestigiado de defensoras de uma democracia frágil, a necessitar ser fortalecida através da instrução e da intervenção na comunidade.

A irredutibilidade entre dois sexos, devida a diferença entre os seus instintos biológicos e a sua diferente relação com a reprodução, em termos de papeis a desempenhar, foi elemento constantemente difundido desde fins do século XIX.

O homem, a sociedade da época, talvez as circunstâncias fizeram da mulher um animal doméstico, que em muitas óticas não sabia pensar, refletir, ter consciência de seus direitos e deveres, não a educou, convertendo-a num ser humano, quando muito,

a sua preocupação era torna-se prendada, divertida, aquela que recriava, exibia habilidade e sensualidade, batucando Chopin, as músicas sensuais de cabarés ou dos fados das revistas, contudo essa condição de mulher domesticada, contrapõe-se ao desejo de muitas ao acesso a todo tipo de profissões e a sua capacidade de exercê-las, para muitas não havia profissões ou ocupações baseadas na natureza sexual, mas sim, conforme as condições e oportunidades oferecidas e permitidas.

Rachel Soihet[8] diz que medidas foram tomadas para adequar homens e mulheres dos segmentos populares ao novo estado de coisas, inculcando-lhes valores e formas de comportamento que passavam pela rígida disciplinarização do espaço e do tempo do trabalho e de todas as esferas da vida, dessas camadas populares se esperava uma força de trabalho adequado e disciplinada, especificamente sobre as mulheres as atenções eram dobradas principalmente quando se tratava do comportamento pessoal e familiar, durante o século XIX, havia inúmeras famílias chefiadas por mulheres sós, com concepções de honra e de casamento que ameaçavam e eram consideradas perigosas à moralidade dessa nova sociedade que se formava.










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[1] FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucamos. Rio de Janeiro: Record,2002, p.125.

[2] PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo Contexto, 2005, p.121, 122, 123, 124.

[3] LOURO, Guacira Lopes. Magistério de 1º grau: Um trabalho de mulher. Educação e realidade, Porto Alegre: UFRGS, 1993.

[4] CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.

[5] Id. Ibid. p. 89, 92, 93,96.

[6] VENANCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. Em: Historia das mulheres no Brasil, São Paulo. Contexto. 2006. P. 189/202.

[7] ARAUJO, Helena Costa. As mulheres professoras e o ensino estatal. Em: Educação e realidade. Mulher e educação. Vol. 15, n 2. Jul/dez, 1990.

[8]SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. Em: História das mulheres no Brasil. São Paulo. Contexto, 2006.

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