Atropelando o humanismo
fonte: O Estado de São Paulo 15 de maio de 2011
Nunca antes tivemos tanta liberdade, informação e consumo, em termos gerais. Mas o que temos feito disso? A liberdade se confunde facilmente com o egoísmo, com a exaltação publicitária do “eu faço o que quiser” e o medo de assumir compromissos. A informação não produz cidadãos mais conscientes e debates melhores, pois poucos se interessam por ideias gerais e pelo que aconteceu antes de nascerem. O consumo se torna patologia, em que sempre se olha para o que não se tem, ou seja, para o que o outro tem, mesmo que não haja a menor necessidade de ter aquilo. Com tanta valorização do dinheiro e da aparência, fica mais difícil encontrar amizade e amor verdadeiros, que dependem da confiança no outro em momentos difíceis; e se deterioram rapidamente a arte da conversa e o gosto pela leitura, sem os quais é difícil vencer a imaturidade. Em uma frase, o humanismo tem sido atropelado por nossa vida acelerada.
Abro um site noticioso, por exemplo, e lá estão as notícias mais lidas do dia: “1) Ivete Sangalo cai no palco durante show em Petrolina; 2) Rafinha Bastos causa polêmica após brincar sobre órfãos no Dia das Mães; 3) Elefante de filme com Robert Pattinson sofreu maus tratos; 4) Whitney Houston começa a fazer novo tratamento de reabilitação; 5) Justin Bieber se defende de críticas de atriz de CSI”. Parem o mundo, quero descer! Você pode dizer que boa parte da culpa é da mídia, mas note que nenhuma dessas “reportagens” estava no alto da página, onde se costumam pôr as manchetes mais importantes. E você pode alegar que a permanência em cada uma dessas páginas não passa de 30 segundos, que então o leitor não lhe dá tanta relevância, mas quem disse que a maioria vai gastar mais de um minuto em um assunto mais relevante? Celebridades são “seguidas” mais e mais porque parecem ter tudo: beleza, bajulação e bilhões.
Fala-se muito que nossos tempos são marcados pela diversidade, por não haver tendências hegemônicas, etc. No entanto, li há algum tempo Danuza Leão descrevendo um jantar de dez casais, digamos, no qual oito das mulheres usavam a mesma marca de sapato, com a mesma sola vermelha. A pior uniformidade, porém, é a mental. É a que dita que não basta ter meia dúzia de bolsas, não basta ter um carrão, não basta levar as crianças para uma praia; é preciso ter dezenas de bolsas, carrões ainda mais vistosos, fotos das crianças em Paris. Como disse o escritor Pedro Bandeira, o brasileiro dá mais valor a um tênis do que a um livro. Afinal, está disposto a pagar R$ 300 pelo primeiro, mas diz que R$ 40 pelo segundo é caro – assim como diz que não tem tempo para ler, mas passa horas e horas diante da TV ou nas redes virtuais. A capacidade de concentração está em declínio; muitas coisas são feitas ao mesmo tempo, nenhuma com a devida consistência. Exibir vale mais que saber.
Outra consequência desse mundo cada vez mais frívolo se mostra em ambientes de trabalho de todos os tipos. De olho nas promoções e nos bônus, passar o colega para trás começou a ser atitude elogiável, assim como trabalhar mais horas, mesmo que em prejuízo da vida familiar e do ócio. Funcionários dão aos clientes a desculpa de que “o sistema não permite”, incapazes de contestar essas ordens para não ser acusados de não ter “inteligência emocional”. Nas ruas das grandes cidades, a gentileza vai sarjeta abaixo; SUVs fazem uma luta darwinista pela sobrevivência do mais caro. Mulheres optam pelo papel de bonequinhas de ricaços, e há mais e mais estilistas para vesti-las e cirurgiões para repuxá-las. Jovens vivem com os pais até quase os 40 anos, enfileirando cursos e bicos para adiar a responsabilidade de uma carreira decente e continuando a se vestir do mesmo jeito. Crianças dizem que seu sonho é serem famosas, não importa em quê ou como.
A esta altura, alguns leitores podem estar pensando que esse consumismo e essa alienação são produtos do capitalismo ou da modernidade. Mas o fatalismo ideológico, marxista ou culturalista, não leva a lugar nenhum. Sem o capitalismo moderno, em que a busca do lucro é moderada por regras comuns e em parte transformada em benefícios coletivos, não teríamos tanta liberdade, informação e consumo. Nem preciso dizer como liberdade e informação são fundamentais, para evitar tiranias e respeitar diferenças, e mesmo o consumo tem papel importante em nosso conforto e, sim, em nossa identidade. A culpa não é do sistema, mas do que fazemos dele. Para contrapor essa onda de individualismo exacerbado é preciso uma mudança de mentalidade, não o aumento ou a diminuição do Estado, e relembrar os valores das qualidades interiores e da cultura geral, daquilo que não se pode rotular a partir da forma e do status. “Ninguém sabe o que sou quando rumino”, escreveu Machado de Assis, cansado de ser julgado por seu aspecto exterior. Ser não é aparecer.
CADERNOS DO CINEMA
Não fui ver Thor por causa de Kenneth Branagh, o diretor, mas por causa do meu filho, Bernardo. Mas, enquanto decidia se é ou não o pior filme que já vi (talvez seja o pior filme caro que já vi), não pude deixar de sentir uma espécie de vergonha por Branagh. Afinal, admirei muito seus filmes baseados em Shakespeare, Henrique V, Muito Barulho por Nada e Hamlet, entre outros trabalhos como ator e diretor. Não, não fiz comparação nenhuma em minha mente, mesmo que ele próprio tenha se encarregado de dizer que viu elementos shakespereanos na história do filho de Odin e seu conflito com o irmão...
Fui ao cinema conferir um filme de super herói, como vejo, com algum prazer, um Batman, Homem Aranha ou Homem de Ferro. E o que vi foi o desfile dos efeitos especiais mais cafonas que Hollywood já conseguiu pagar, com atuações para lá de canastronas de nomes como Natalie Portman e Anthony Hopkins, num enredo que não empolga, com um protagonista que se parece com um robô loirinho. Quase não há humor – voluntário, digo – e as sequências de ação são as mais velhas do gênero, com homens pendurados em pontes e brigas de socos inverossímeis. Não há uma frase que preste, o que me obriga a recorrer a Shakespeare também, a um personagem que Branagh já representou, Iago: “Put money in thy purse”. Embolse o dinheiro, Kenneth.
RODAPÉ
É um livro estranho, o novo de Don DeLillo, autor de Ruído Branco, Libra e Submundo, para citar meus preferidos. Não que isso seja ruim. Ponto Ômega mal chega a ter personagens, pois a convivência entre um documentarista, um especialista em guerra e sua filha é mais meditada do que narrada, partindo de uma instalação sobre Psicose, o filme de Hitchcock. Em alguns momentos a novela, por seu tom quase inerte e metafórico, lembra algumas das piores coisas de Paul Auster, mas DeLillo escreve melhor e nos conduz por aquele mundo meio pré-apocalíptico com categoria e sem páginas demais.
No entanto, eu queria que Elster falasse mais sobre: “Eu tinha uma mente esfomeada. Uma mente pura. Eu enchia cadernos com as minhas versões das filosofias todas. E agora, olha como estamos. Inventando narrativas folclóricas do final”. E sobre a necessidade contemporânea de chegar a uma “transformação sublime da mente e da alma ou a uma convulsão do mundo”. E frases como a que encerra o livro na página 102: “Às vezes bate um vento da chuva e arrasta os pássaros que se veem pela janela, pássaros espectrais que vagam na noite, mais estranhos que os sonhos”.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Vamos supor que uma pessoa tenha objeções a construir um metrô naquele específico cruzamento da avenida Angélica por questões de custo ou logística, ou que levante a questão ainda não levantada de que há muitos bairros sem metrô em São Paulo e não faz muito sentido que um deles passe a ter duas estações no intervalo de 600 metros (o que só acontece em grandes entroncamentos como Sé e Vergueiro). Mas não foi isso que aconteceu.
O que ditou a rejeição de parte dos moradores de Higienópolis – nem se sabe se maioria, suspeito que não seja – foi o preconceito, a noção errada de que a estação atrairia camelôs e mendigos (“gente diferenciada”) e degradaria o bairro (como um dia disseram até do shopping). Ao contrário, seria uma valorização tremenda para quem vive ali perto. Um dos maiores problemas de São Paulo é o transporte público, mas a cultura do carro como status domina a cidade e atrapalha muito. Pelo visto, meu sonho de ir trabalhar de metrô não vai se realizar nunca, a não ser que eu mude de cidade.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Ouço que um livro didático distribuído pelo governo a mais de 4 mil escolas, Por uma Vida Melhor, diz que construções como “Os livro estão emprestado” e “Os menino pega os peixe” podem ser consideradas corretas... Digamos que elas não deixam de comunicar seu sentido, no registro oral; afirmar que não estão erradas é outra coisa. Não vem de hoje esse populismo dos linguistas brasileiros, uma “zelite” sentada em gabinetes acadêmicos, mas parece que depois do governo Lula eles “está” mais à vontade que nunca.
Interrompo meus textos sobre corpo feminino e mulher para colocar esta pérola do escritor Daniel Piza.
Valeu, foi um órimo motivo para acordar no domingo e ler o estadão
disponivel em http://www.danielpiza.com.br/interna.asp?texto=2809 acesso em 18 de maio
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