Mulheres, Literatura ....Dia da MUlher
Sobre mulheres, livros, leituras e escrituras
Literatura de mulherzinha é desperdício de papel: melhor é encontrar-se com Virgínia Woolf, Simone de Beauvoir, Hilda Hilst, Dorothy Parker e tantas outras que mudaram a trajetória da mulher na sociedade ocidental
Ana Rita Fonteles - Especial para O POVO - 06 Mar 2010 - 19h43min
Entre suspiros, abandonar-se à leitura de romances de capa e espada. Contrariando a tudo e a todos e até mesmo a ELE, conseguir no mercado negro exemplares vetados pela Igreja Católica, a partir do século XVI, pela ``imoralidade`` e ``heresia`` contida em suas páginas. Invadir na ponta dos pés a biblioteca paterna e surrupiar o último lançamento de Eça de Queiroz, que será lido, é claro, à luz de velas, quando todos dormirem. Com parcos recursos fazer circular jornais que entre os últimos lançamentos de moda, trazem apreciações sobre novos romances e poesias, além de artigos reivindicando o direito ao voto e à educação escolarizada. Já vai longe a relação das mulheres com os livros na descoberta de novas possibilidades de vida, no alimento da escrita, no fortalecimento da transgressão.
Alimentadas pela leitura que mulheres sentiram-se encorajadas a desafiar a República francesa exigindo sua inclusão na recém fundada cidadania. As campanhas sufragistas em vários lugares,
entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX, são alimentadas por livros como Uma Defesa dos Direitos da
Simone de Beauvoir
Mulher, da britânica Mary Wollstonecraft, que teve suas ideias utilizadas para enfrentar os preconceitos da sociedade patriarcal brasileira por Nísia Floresta, a escritora potiguar que, obrigada a se casar aos 13 anos, fugiu de casa e abandonou o marido um ano depois, em 1824.
Sim, os livros pareciam mesmo ser ``perigosos`` para as mulheres. Carmen da Silva, a jornalista que introduz temas feministas na agenda das mulheres brasileiras de classe média, a partir da década de 1960, descobriu que sua cidade gaúcha era pequena demais para seus sonhos e que desejava mais que tudo escrever, através dos seus encontros frequentes com Flaubert, Thomas Mann, Huxley, Ortega y Gasset, Nietzsche, Machado de Assis.
Dois livros especialmente ajudaram a transformar a história das mulheres no século XX, no Ocidente. Em 1949, no auge das campanhas de incentivo ao maternalismo e aumento da natalidade na França, a filósofa Simone de Beauvoir lança sua bomba incendiária O Segundo Sexo, primeiro pensamento sistematizado a questionar o determinismo biológico, desmontando a maternidade e a heterossexualidade como inescapáveis para as mulheres. Em sua primeira experiência de escrita autobiográfica, Memórias de uma moça bem comportada, ela relata o papel dos livros em sua formação. A moça de classe média tinha tanto desejo pela leitura que se esquecia, por vezes, de escovar os dentes e almoçava sanduíches de linguiça levados de casa para não perder tempo fora da biblioteca, seu verdadeiro lar.
Em 1963, a dona de casa americana, Betty Friedan, incomodada pela situação de vazio trazido pelo american way of life para a vida de suas contemporâneas e dela mesma, transforma A Mística Feminina num best-seller com grande repercussão dentro e fora dos Estados Unidos. O livro a transforma na maior liderança feminista americana e desencadeia uma campanha da imprensa que prefere taxá-la de feia e mal amada a analisar a força de seus argumentos. Tanto seu livro como de Beauvoir tornam-se textos instrumentais. As mulheres que engrossam as fileiras dos movimentos feministas os devoravam, ligando os escritos a suas experiências pessoais, alimentando seus questionamentos.
Os anos de 1980 foram especialmente importantes para a produção de uma literatura centrada na escrita do eu, através da publicação em massa de autobiografias e livros de memória centrados em experiências de ruptura e invenção de novas vidas para muitas mulheres. Essa escrita expandiu-se a partir dos anos 1990 para os blogs, diários virtuais, em relatos que vão desde queixas cotidianas a reflexões aprofundadas, além de ter servido como espaço alternativo para a publicação da novíssima literatura brasileira escrita ou não por mulheres.
tp://www.noolhar.com/opovo/vidaearte/960130.html
Literatura de mulherzinha é desperdício de papel: melhor é encontrar-se com Virgínia Woolf, Simone de Beauvoir, Hilda Hilst, Dorothy Parker e tantas outras que mudaram a trajetória da mulher na sociedade ocidental
Ana Rita Fonteles - Especial para O POVO - 06 Mar 2010 - 19h43min
Entre suspiros, abandonar-se à leitura de romances de capa e espada. Contrariando a tudo e a todos e até mesmo a ELE, conseguir no mercado negro exemplares vetados pela Igreja Católica, a partir do século XVI, pela ``imoralidade`` e ``heresia`` contida em suas páginas. Invadir na ponta dos pés a biblioteca paterna e surrupiar o último lançamento de Eça de Queiroz, que será lido, é claro, à luz de velas, quando todos dormirem. Com parcos recursos fazer circular jornais que entre os últimos lançamentos de moda, trazem apreciações sobre novos romances e poesias, além de artigos reivindicando o direito ao voto e à educação escolarizada. Já vai longe a relação das mulheres com os livros na descoberta de novas possibilidades de vida, no alimento da escrita, no fortalecimento da transgressão.
Alimentadas pela leitura que mulheres sentiram-se encorajadas a desafiar a República francesa exigindo sua inclusão na recém fundada cidadania. As campanhas sufragistas em vários lugares,
entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX, são alimentadas por livros como Uma Defesa dos Direitos da
Simone de Beauvoir
Mulher, da britânica Mary Wollstonecraft, que teve suas ideias utilizadas para enfrentar os preconceitos da sociedade patriarcal brasileira por Nísia Floresta, a escritora potiguar que, obrigada a se casar aos 13 anos, fugiu de casa e abandonou o marido um ano depois, em 1824.
Sim, os livros pareciam mesmo ser ``perigosos`` para as mulheres. Carmen da Silva, a jornalista que introduz temas feministas na agenda das mulheres brasileiras de classe média, a partir da década de 1960, descobriu que sua cidade gaúcha era pequena demais para seus sonhos e que desejava mais que tudo escrever, através dos seus encontros frequentes com Flaubert, Thomas Mann, Huxley, Ortega y Gasset, Nietzsche, Machado de Assis.
Dois livros especialmente ajudaram a transformar a história das mulheres no século XX, no Ocidente. Em 1949, no auge das campanhas de incentivo ao maternalismo e aumento da natalidade na França, a filósofa Simone de Beauvoir lança sua bomba incendiária O Segundo Sexo, primeiro pensamento sistematizado a questionar o determinismo biológico, desmontando a maternidade e a heterossexualidade como inescapáveis para as mulheres. Em sua primeira experiência de escrita autobiográfica, Memórias de uma moça bem comportada, ela relata o papel dos livros em sua formação. A moça de classe média tinha tanto desejo pela leitura que se esquecia, por vezes, de escovar os dentes e almoçava sanduíches de linguiça levados de casa para não perder tempo fora da biblioteca, seu verdadeiro lar.
Em 1963, a dona de casa americana, Betty Friedan, incomodada pela situação de vazio trazido pelo american way of life para a vida de suas contemporâneas e dela mesma, transforma A Mística Feminina num best-seller com grande repercussão dentro e fora dos Estados Unidos. O livro a transforma na maior liderança feminista americana e desencadeia uma campanha da imprensa que prefere taxá-la de feia e mal amada a analisar a força de seus argumentos. Tanto seu livro como de Beauvoir tornam-se textos instrumentais. As mulheres que engrossam as fileiras dos movimentos feministas os devoravam, ligando os escritos a suas experiências pessoais, alimentando seus questionamentos.
Os anos de 1980 foram especialmente importantes para a produção de uma literatura centrada na escrita do eu, através da publicação em massa de autobiografias e livros de memória centrados em experiências de ruptura e invenção de novas vidas para muitas mulheres. Essa escrita expandiu-se a partir dos anos 1990 para os blogs, diários virtuais, em relatos que vão desde queixas cotidianas a reflexões aprofundadas, além de ter servido como espaço alternativo para a publicação da novíssima literatura brasileira escrita ou não por mulheres.
Virginia Wolf
Os livros hoje continuam importantes, não há dúvida, principalmente num país onde os caminhos para a leitura são ainda tão excludentes. Quando se fala para a literatura para as mulheres pouca coisa de impacto vem sendo escrita, retratos de uma época caracterizada pela fragmentação de públicos, excesso de informações, e da ideia de que para as mulheres as grandes questões não existem mais. Elas chegaram lá, não é mesmo? Aparentemente nos restaria a tal da literatura ``para mulherzinhas``, ou ``chick lit``, focada na busca incessante por namorados e maridos e a consequente obsessão pelo corpo. Desperdício de papel.
Inspiradas nas mulheres que, ao longo da história, descobriram-se diversas, deslocadas e ansiosas por outros caminhos em meios aos livros, torna-se vital selecionarmos cada vez mais aquilo que escolhemos para ler. Na lista, bons lançamentos e visitas sempre frequentes aos clássicos. Assim entre Stendhal, Flaubert, Virgínia Woolf, Beauvoir, Hilda Hilst, Dorothy Parker, Machado de Assis e tantos outros, a gente pode se encontrar. Ou ainda melhor, perder-se.
ANA RITA FONTELES é doutora em História pela UFSC e pesquisadora Funcap/CNPq do Departamento de História da UFC. tp://www.noolhar.com/opovo/vidaearte/960130.html
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