Aparência é fundamental, e daí?
ESTE É UM TEXTO QUE EU GOSTARIA DE TER FEITO FALA O QUE PENSO, ESTUDO E QUESTIONO. PARABENS VIVIANE FELIZ 2010.
FONTE: http://www.amalgama.blog.br/12/2009/aparencia-e-fundamental/
Aparência é fundamental, e daí?
30–12–2009 --- Envie para um amigo --- Tuitar por Viviane Moreira * –
A forma desperta olhares. O que tem forma é para ser visto. O olhar distingue bem a forma. Quem olha remodela com seu olhar a forma. Entre forma e aquele que vê: a aparência. Se a forma não pudesse ser vista… É assim que funciona desde que o homem foi dotado de visão para reconhecer o belo e o feio. Uma bela aparência na nossa sociedade abre portas em diversas esferas. É um fator que favorece socialmente o homem e a mulher. A aparência conta na entrevista de um emprego e aponta um lugar de destaque na sociedade. Entretanto, a fixação da aparência como valor trouxe mudanças nas relações sociais, afetivas e na subjetividade.
A busca desmedida pelo ideal de uma bela aparência tem sido associada a doenças como anorexia, bulimia e ao aumento do número de vítimas de danos estéticos, alguns irreversíveis, causados por intervenções cirúrgicas desastrosas.
Padrões de beleza são incorporados pelo homem, e se modificam. O imaginário compõe a forma da beleza de uma época. O que simboliza a beleza muda com o tempo. Gianecchini não faria sucesso nos tempos de 007, quando as mulheres suspiravam pelo peito farto de pelos do Sean Connery. Na literatura, algumas musas dos Românticos eram alvas e lânguidas, possuíam traços de fragilidade e eram adoradas por serem inacessíveis. As heroínas despertavam amores impossíveis de se consumar. A mulher de hoje inspiraria esse perfil?O que é ter uma bela aparência qualquer um com senso estético, até uma criança, pode responder, mas quem diz hoje o que é bonito, o que é feio? A mídia, a moda, a ciência e a indústria estética reverenciadas pelo clamor do espetáculo.
Fatores além da permissividade e da passividade explicam a dimensão do culto ao espetáculo: o esvaziamento de ideais, o esvaecimento do pensamento e até da inteligência. Numa cena do filme As Invasões Bárbaras (Denys Arcand), quando os amigos se reúnem para se despedirem do querido amigo Rémy, um deles lamenta: “A inteligência desapareceu.”
Mas se a aparência moldada pelo mercado ordena as relações sociais hoje – e não é exagero dizer que as relações afetivas não ficam fora desse ordenamento -, se os padrões que simbolizam o belo não estão mais sob o domínio do imaginário do sujeito, pois não é tão-somente ele enquanto indivíduo quem os cria, o que lhe resta de autonomia na arte da forma? Esta é uma questão que parece escapar do sujeito narcisista da atualidade.
O homem enquanto ser social precisa se inserir na civilização. Tem que conviver com outros homens. O laço social nos une. Temos que conter nossas pulsões, agressividade, para nos inserirmos na cultura. É a condição da civilização. “Sem as renúncias pulsionais não haveria civilização” (Renato Mezan em Freud, pensador da cultura). Portanto, a cultura requer “economia psíquica do ser humano”. Sem sacrifício das pulsões a cultura não sobrevive. Sem cultura não há política, não há direito, não há sociedade.
Hannah Arendt “detestava a celebridade, mas celebrava o aparecer e o espetáculo”. “Admitia o ‘aparecer’ como uma condição para cada um revelar a sua singularidade e o senso político como um ‘gosto’ de mostrar, de observar, de se lembrar e de contar.” (Julia Kristeva em O gênio feminino – a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt)
Arendt encontrou em Kant (Crítica da faculdade de julgar) a chave para a sua abordagem do julgamento: a ideia de uma pluralidade de espectadores. Para Kant, “o mundo sem espectadores seria um deserto”. “Sem eles os belos objetos não teriam como aparecer, pois estes são criados pelo julgamento dos espectadores e dos críticos.” O espectador kantiano é interessante “enquanto instância do julgamento”. “O gosto é a particularidade que caracteriza os espectadores e fundamenta a comunicabilidade e o julgamento, por ser o sentido mais singular e o mais partilhável. Prefigura a faculdade de julgar e de discernir o verdadeiro do falso.” “O gosto é intrinsecamente político.”
Com Kant e Arendt aprendemos que o gosto é o nosso sentido mais confiável no exercício de aprovação ou desaprovação. Com ele experimentamos sensações imediatas de prazer ou desprazer que dizem do nosso ser. A comunicabilidade do que agrada ou desagrada é inerente ao gosto. A visão pode nos tapear, a audição também. Pensamos que não ouvimos o que nos desagrada, e acreditamos que ouvimos o que não foi dito, pois preferimos o não-dito ao que não queremos ouvir.
O gosto não permite tais enganos. Um bebê sabe disso e nos “diz” do que gosta e do que não gosta. Se não gostar de um alimento ele reage: regurgita-o. Se insistirmos que coma, ele faz careta, fecha a boca e desata no choro, e fim de papo. Então compreendemos que aquele alimento não foi aprovado. Ele não gostou. Ao agir assim, o bebê exercita suas faculdades de julgamento e comunicação a partir da sensação de desprazer advinda do gosto.
Tenho impressão de que estamos nos descuidando do sentido do gosto. Antenados demais nas cartilhas de bom gosto, nas dicas de certo e errado e nos manuais da boa forma obedecemos aos apelos das tendências do momento com subserviência mecânica. Dependentes do olhar técnico estamos deixando de lado a singularidade do gosto: o que nele é nosso. Assim, abrimos mão do prazer do gosto. E, se estamos levando pouco a sério o gosto, estamos ligando o “piloto automático” para o prazer de viver a vida com os sabores que ela generosamente nos oferece. Estamos franqueando nosso sentido mais privado por onde a vida pulsa de verdade – a troco de quê?
Segundo pesquisas realizadas por especialistas, a ansiedade com as festas de Natal e Réveillon aumenta os níveis de estresse por causa da cobrança de felicidade. Todos temos que parecer felizes, pois não há espaço para a aparência de outro sentimento. É bom não esquecer que viver no conforto do parece-ser pode ter certo fascínio, mas a vida forjada na aparência pode não significar nada.
* Viviane Moreira, Belo Horizonte-MG, não é artista, não é psicanalista, não é filósofa.
FONTE: http://www.amalgama.blog.br/12/2009/aparencia-e-fundamental/
Aparência é fundamental, e daí?
30–12–2009 --- Envie para um amigo --- Tuitar por Viviane Moreira * –
A forma desperta olhares. O que tem forma é para ser visto. O olhar distingue bem a forma. Quem olha remodela com seu olhar a forma. Entre forma e aquele que vê: a aparência. Se a forma não pudesse ser vista… É assim que funciona desde que o homem foi dotado de visão para reconhecer o belo e o feio. Uma bela aparência na nossa sociedade abre portas em diversas esferas. É um fator que favorece socialmente o homem e a mulher. A aparência conta na entrevista de um emprego e aponta um lugar de destaque na sociedade. Entretanto, a fixação da aparência como valor trouxe mudanças nas relações sociais, afetivas e na subjetividade.
A busca desmedida pelo ideal de uma bela aparência tem sido associada a doenças como anorexia, bulimia e ao aumento do número de vítimas de danos estéticos, alguns irreversíveis, causados por intervenções cirúrgicas desastrosas.
Padrões de beleza são incorporados pelo homem, e se modificam. O imaginário compõe a forma da beleza de uma época. O que simboliza a beleza muda com o tempo. Gianecchini não faria sucesso nos tempos de 007, quando as mulheres suspiravam pelo peito farto de pelos do Sean Connery. Na literatura, algumas musas dos Românticos eram alvas e lânguidas, possuíam traços de fragilidade e eram adoradas por serem inacessíveis. As heroínas despertavam amores impossíveis de se consumar. A mulher de hoje inspiraria esse perfil?O que é ter uma bela aparência qualquer um com senso estético, até uma criança, pode responder, mas quem diz hoje o que é bonito, o que é feio? A mídia, a moda, a ciência e a indústria estética reverenciadas pelo clamor do espetáculo.
Fatores além da permissividade e da passividade explicam a dimensão do culto ao espetáculo: o esvaziamento de ideais, o esvaecimento do pensamento e até da inteligência. Numa cena do filme As Invasões Bárbaras (Denys Arcand), quando os amigos se reúnem para se despedirem do querido amigo Rémy, um deles lamenta: “A inteligência desapareceu.”
Mas se a aparência moldada pelo mercado ordena as relações sociais hoje – e não é exagero dizer que as relações afetivas não ficam fora desse ordenamento -, se os padrões que simbolizam o belo não estão mais sob o domínio do imaginário do sujeito, pois não é tão-somente ele enquanto indivíduo quem os cria, o que lhe resta de autonomia na arte da forma? Esta é uma questão que parece escapar do sujeito narcisista da atualidade.
O homem enquanto ser social precisa se inserir na civilização. Tem que conviver com outros homens. O laço social nos une. Temos que conter nossas pulsões, agressividade, para nos inserirmos na cultura. É a condição da civilização. “Sem as renúncias pulsionais não haveria civilização” (Renato Mezan em Freud, pensador da cultura). Portanto, a cultura requer “economia psíquica do ser humano”. Sem sacrifício das pulsões a cultura não sobrevive. Sem cultura não há política, não há direito, não há sociedade.
Hannah Arendt “detestava a celebridade, mas celebrava o aparecer e o espetáculo”. “Admitia o ‘aparecer’ como uma condição para cada um revelar a sua singularidade e o senso político como um ‘gosto’ de mostrar, de observar, de se lembrar e de contar.” (Julia Kristeva em O gênio feminino – a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt)
Arendt encontrou em Kant (Crítica da faculdade de julgar) a chave para a sua abordagem do julgamento: a ideia de uma pluralidade de espectadores. Para Kant, “o mundo sem espectadores seria um deserto”. “Sem eles os belos objetos não teriam como aparecer, pois estes são criados pelo julgamento dos espectadores e dos críticos.” O espectador kantiano é interessante “enquanto instância do julgamento”. “O gosto é a particularidade que caracteriza os espectadores e fundamenta a comunicabilidade e o julgamento, por ser o sentido mais singular e o mais partilhável. Prefigura a faculdade de julgar e de discernir o verdadeiro do falso.” “O gosto é intrinsecamente político.”
Com Kant e Arendt aprendemos que o gosto é o nosso sentido mais confiável no exercício de aprovação ou desaprovação. Com ele experimentamos sensações imediatas de prazer ou desprazer que dizem do nosso ser. A comunicabilidade do que agrada ou desagrada é inerente ao gosto. A visão pode nos tapear, a audição também. Pensamos que não ouvimos o que nos desagrada, e acreditamos que ouvimos o que não foi dito, pois preferimos o não-dito ao que não queremos ouvir.
O gosto não permite tais enganos. Um bebê sabe disso e nos “diz” do que gosta e do que não gosta. Se não gostar de um alimento ele reage: regurgita-o. Se insistirmos que coma, ele faz careta, fecha a boca e desata no choro, e fim de papo. Então compreendemos que aquele alimento não foi aprovado. Ele não gostou. Ao agir assim, o bebê exercita suas faculdades de julgamento e comunicação a partir da sensação de desprazer advinda do gosto.
Tenho impressão de que estamos nos descuidando do sentido do gosto. Antenados demais nas cartilhas de bom gosto, nas dicas de certo e errado e nos manuais da boa forma obedecemos aos apelos das tendências do momento com subserviência mecânica. Dependentes do olhar técnico estamos deixando de lado a singularidade do gosto: o que nele é nosso. Assim, abrimos mão do prazer do gosto. E, se estamos levando pouco a sério o gosto, estamos ligando o “piloto automático” para o prazer de viver a vida com os sabores que ela generosamente nos oferece. Estamos franqueando nosso sentido mais privado por onde a vida pulsa de verdade – a troco de quê?
Segundo pesquisas realizadas por especialistas, a ansiedade com as festas de Natal e Réveillon aumenta os níveis de estresse por causa da cobrança de felicidade. Todos temos que parecer felizes, pois não há espaço para a aparência de outro sentimento. É bom não esquecer que viver no conforto do parece-ser pode ter certo fascínio, mas a vida forjada na aparência pode não significar nada.
* Viviane Moreira, Belo Horizonte-MG, não é artista, não é psicanalista, não é filósofa.
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