A Cultura do Fetiche: Corpo e Moda
QUERIDA NÍZIA TOMO SEU TEXTO EMPRESTADO´PARA INICIAR O ANO COM REFLEXÕES MAIS PROFUNDAS.... ESPERO QUE TODOS COMENTEM
Título:A Cultura do Fetiche: Corpo e Moda1
Autora: Nízia Maria Souza Villaça2
A Cultura do Fetiche: Corpo e Moda
“Observe também nossa capacidade de transformar
nossos objetos em fetiche e lhes atribuir poderes mágicos
ou religiosos, valores simbólicos e comemorativos,
virtudes afrodisíacas”.
Peter Gabriel3
A epígrafe, retirada do livro Extraordinários objetos, é o mote utilizado para pequeno
roteiro interpretativo das relações entre cultura, moda/corpo e fetichismo em seus diferentes
contextos (marxiano, antropológico e freudiano). Ela permite a ampliação da noção de fetiche
que, nas interpretações acima referidas, costumam conter as idéias de: substituição enganosa,
determinada pela má-fé (fetichismo da mercadoria na produção capitalista); crendice e
ingenuidade (implícita na transcendência dos fetiches em sociedades primitivas); substituição
de cunho perverso (fruto de fantasias sexuais na versão freudiana). Apostando no
reinvestimento simbólico do fetiche, seguiremos algumas etapas, visando redefinir a dinâmica
cultural, refletir sobre a relação corpo/moda e os processos de subjetivação nos contextos
contemporâneos de alta visibilidade.
1 Trabalho apresentado ao NP 15 – Semiótica da Comunicação
2 Professora Titular da Escola de Comunicação/UFRJ; pesquisadora do CNPq; autora dentre outros dos seguintes livros:
Impresso ou eletrônico? – um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad, 143 páginas, 2002; Em pauta: corpo, globalização e
novas tecnologias. Rio de Janeiro: Mauad/CNPq, 112 páginas, 1999; Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco. Co-autor:
Fred Góes, 224 páginas, 1998. E-mail: nmvillaca@uol.com.br
3 GABRIEL, Peter. Extra/ordinary objects 1. New York: Taschen, 2003.
O TEXTO
Ver na cultura um produto que se transmite, com signos estratificados e valores
produzidos hegemonicamente, implica um processo de reificação ou fetichização de viés
restritivo e negativo. Como teorizou Marx, são apagados, desta forma, os rastros das relações
sociais que a produziram. Preferimos, ao contrário, abrir espaço para um jogo de
significação/interpretação que valoriza a disputa de sentidos entre indivíduos e grupos sociais
procurando fazer valer suas vozes, seus direitos e seus fetiches. Como bem lembrou Foucault
as lutas por significados não se resolvem no terreno epistemológico, mas no terreno político
das relações de poder.
A dinâmica corpo/moda é por nós considerada dentro do subsistema da cultura
corporal que vem sendo ativamente discutido, sobretudo devido aos horizontes abertos pelas
novas tecnologias da comunicação e aos contextos em que a aparência é fator determinante da
produção de sentidos. A moda, como outros processos culturais, produz significados, constrói
posições de sujeito, identidades individuais e grupais, cria códigos que guerreiam entre si,
num fórum que se globaliza progressivamente. Se, por um lado, ela oferece estratégias ao
corpo para sua expressão/liberação, por outro, contém mecanismos de controle nas imagens
que faz circular. Os recursos estéticos da moda e o acesso ao consumo podem funcionar tanto
como elementos de cidadania, democratização e comunicação, como de exclusão elitista, via
códigos, simultaneamente rígidos e sutis, que se tornam verdadeiros fetiches, mais
importantes que o corpo.
Se observarmos o desdobramento das relações entre o corpo e a moda a partir dos anos
50, verificaremos muitas transformações no imaginário desta conexão. A moda dos anos 50
estava inscrita no âmbito de uma representação rígida, estabelecia regras nítidas de
estratificação social, distinção, impondo um comportamento que deveria ser obedecido de
acordo com a ocasião ou solenidade a que o indivíduo devesse comparecer. Havia uma
seleção de cenários e uma seqüência de peças de vestuários a serem combinadas. De alguma
forma, se, do lado da produção e do marketing, havia a moda, que chamaríamos “proposta”,
do lado do público consumidor, a recepção e o uso se davam como fetiche: acreditava-se no
poder da moda para assegurar lugares e posições. Tal imaginário transforma-se nos anos 60 e
70 e novos interlocutores ganham espaço na produção do mundo “fashion”. Misturam-se as
estéticas da alta, da média e da baixa costura, contribuindo para este fato, a importância da
disseminação do prêt-à-porter, da revolução feminina e a dos jovens. A alta costura começa a
dialogar com a rua e a moda entra efetivamente no universo cultural, enquanto lugar onde a
produção de sentido ganha espaço. Moda torna-se atitude e comportamento. Nos anos 80,
entretanto, a grande investida do mercado no âmbito multinacional vai implicar sob alguns
aspectos, uma certa paralisação desta dinâmica cultural. O fetiche, no seu viés estratificante,
toma a cena e a “griffe” é o grande objeto que acaba por imolar a incipiente expressividade do
corpo nos anos de liberação a que nos referimos. O filme O psicopata americano é
representativo da escalada da moda fetiche. Os executivos “yuppies” disputam o melhor
cartão de visita, correm atrás de uma reserva no restaurante “fetiche” e tudo parece girar em
torno da posse de objetos, sejam eles pessoas, valores materiais ou simbólicos. Nos anos 80
predominou o fetiche material que remetia diretamente ao estrato social privilegiado.
O recurso ao fetiche sexual no campo da moda vem sendo recorrente, mas, visando a
ampliar o sentido do termo, faremos a distinção de dois níveis: aquele em que o fetiche
mantém relação com o corpo e aquele em que ele parece dispensá-lo ou suplantá-lo. Tendo
em vista o viés freudiano, num primeiro nível, o uso de espartilhos, botas, couros etc., faz
parte de uma valorização do corpo, ou pelo menos mantém com ele uma relação forte. As
opiniões de Valerie Steele4 dão pistas para processar a relação moda, corpo e fetiche, nesta
primeira linha. Especialista em moda, como sistema simbólico produtor de identidade de
gênero e comportamento, a autora reconhece a semelhança entre o submundo sadomasoquista
e a moda contemporânea. “Griffes” como Azzedine Alaïa, Dolce & Gabbana, John Galliano,
Jean-Paul Gautier, Thierry Mugler, Gianni Versace, Vivienne Westwood e outros, copiaram e
copiam o estilo e o espírito do fetichismo. A moda apropria-se indiferentemente tanto dos
signos leves (moda, corpo, objetos), quanto dos pesados (políticos, morais, econômicos,
científicos). A apropriação do fetichismo evolui de acordo com as mudanças de atitudes em
relação à expressão sexual, ao desvio e ao entendimento dos estilos eróticos perversos. Já em
1996, Edney Silvestre, correspondente do jornal O Globo em Nova York, em matéria
intitulada – “Taras da moda ou moda dos tarados?” – interrogava Valerie Steele sobre a
liberação da vergonha vitoriana e a proliferação do arsenal fetichista. Em sua resposta, a
autora atribui a mudança comportamental ao movimento de liberação sexual dos anos 60 e 70
que provocou a revisão de padrões e atitudes5. Um símbolo claro desta evolução foi a
generalização das botas de cano alto, que, anteriormente, identificavam as prostitutas.
Num segundo nível de fetichismo parece ocorrer o extermínio do corpo. O fetiche não
mais valoriza partes do corpo com o corpete, o salto agulha, a lingerie, mas toma o seu lugar.
A evolução do pensamento de Baudrillard dá pistas para a compreensão do desenvolvimento
do imaginário da moda e da dinâmica corporal em direção à forma negativa do fetiche. O
autor, em L’échange symbolique et la mort6, discute, inicialmente, a moda e sua relação com
o corpo numa perspectiva marxista, procurando evidenciar uma economia política do signo e
suas estratégias de sedução. Baudrillard interpreta a moda como impeditiva da expressão do
desejo, contrariamente às opiniões da grande maioria dos estudiosos. O “design”, para o autor,
significa controle corporal: o corpo, a sexualidade e as relações políticas e sociais são
desenhadas e projetadas. Mais do que ver na profusão de signos sexuais uma expressão da
libido, ele os vê como sintoma do papel exercido pelo medo da castração, como forma de
controlar esta ameaça: fetichismo e denegação.
Esta interpretação de Baudrillard da moda, de certa forma, ainda se refere ao corpo,
discutindo seu controle e manipulação. Interessa-me, sobretudo, a fase seguinte, quando
aponta o fim da problemática do corpo, da sexualidade, da reprodução, da psicologia e da
psicanálise. A idéia de fetiche, enquanto substituição do corpo, enquanto anulação e
coisificação, corresponde ao pensamento de Baudrillard em sua última fase, quando se
dissemina o controle das tecnologias “softs” e do “software” genético e mental.
Matérias jornalísticas confirmam esta hipótese do extermínio do corpo e do segundo
nível da moda fetiche. Algumas chamam-me especialmente a atenção: “o corpo sumiu”,
afirma Heloísa Marra no jornal O Globo7. A matéria vem exatamente ao encontro da morte do
corpo assinalada por Baudrillard. O corpo vira literalmente vítima da moda no agressivo
trabalho realizado por fotógrafos estilistas, sob os mais diversos pretextos. Hugo Denizard,
em pequeno artigo crítico da questão, comenta que a moda, talvez por sua amoralidade, saiba
morte do corpo sem o peso habitual. De alguma forma, o autor concorda com Baudrillard no
sentido de que a moda, mais do que servir de complemento ao corpo, compete com ele: “a
moda sempre viu o corpo como empecilho para a experimentação. Secretamente sempre lhe
desejou a morte, a moda não quer vestir o corpo: ela quer criar um corpo que lhe sirva de
complemento. Que corpo (de carne, plástico, madeira?) é o mais adequado para a moda8.
As reportagens se sucedem, respondendo a esta pergunta. Matéria enviada de Paris
leva a manchete “Chip-chic”: clones no inverno dos internautas9. Modelos robotizados
desfilam em clima de frieza total, trazendo à tona o lado coisa do manequim. Ocimar
Versolato apresenta linha “underweare” com manequins de longos e lisos cabelos imóveis
sobre uma plataforma rotativa, confirmando a mesma inexpressão corporal10. Ainda uma
outra manchete, “o bricabraque de fetiches do japonismo barroco”, exemplifica mais um tipo
de redução do corpo a suporte para objetos de consumo, numa verdadeira febre cumulativa11.
Ronaldo Fraga, por sua vez, faz um de seus desfiles com roupas girando em cabides,
dispensando o corpo das manequins.
Para refletir sobre uma visão positiva de fetiche, faremos breve remissão a seu
emprego em cerimoniais libertinos no século XVIII, buscando sublinhar a elaboração
simbólica que mediava o cerimonial fetichista.
A Sacher-Masoch desagradava ver seu romance A Vênus das peles integrando um
quadro de sexualidade patológica, justamente porque, conforme ressaltou Deleuze, sua obra
discutia a possibilidade de transcender o humano, sua contingência, por meio do
desvelamento artístico, compreendido aí o papel desempenhado pelo objeto fetiche. O
processo compreendia lentidão, silêncio, concentração, características comuns à arte e ao
erotismo: “as pessoas na sua maioria desconhecem o encantamento. Empobrecem de tanto
falar, de se ativar. Desdenha-se o esforço que vem de dentro, a esperança das metamorfoses e
da espera12”. Kundera critica a ênfase contemporânea na velocidade, êxtase presenteado pela
revolução técnica, contrapondo-lhe a lentidão e seu valor erótico. É sugestiva a passagem do
livro La lenteur, em que comenta o entendimento que um personagem de origem americana
tem do que seja liberação sexual. A palavra orgasmo é repetida quarenta e três vezes e o autor
conclui: “o culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia
contra o ócio (...)13”.
O pequeno romance de Anne Walter14, o livro de Milan Kundera bem como as
reflexões de José Gil em Metamorfoses do corpo, oferecem pontos em comum para a
compreensão da relação entre corpos no sadomasoquismo. A interioridade mais íntima do
corpo é procurada ritualisticamente na relação com o outro. Os fetiches estabelecem as pontes
imaginárias, as metamorfoses do exterior em interior, do corpo em espírito, da percepção
externa em imagem interna. Fica sublinhado o vínculo artístico do cerimonial masoquista tal
como concebido por Sacher-Masoch e interpretado por Deleuze. O corpo se apresenta como
multiplicador dos espaços da alma e seus compartimentos. A substituição da relação direta
pelo fetiche era parte da cerimônia contratual. Tanto a versão freudiana quanto as versões, por
nós transcritas demonstram o processo ritualístico via fetiche.
No marketing da moda contemporânea, assistimos, por sua vez, a um esvaziamento de
sentido que provém basicamente do lado mercadoria da cultura e se liga ao fetiche na sua
versão negativa decantada por Marx.
Matéria no jornal O Globo15 afirma que uma linha de “lingerie”, meias, pirulitos,
máscaras, tamancos e cadernos está sendo lançada no mercado com a chancela da estrela do
Programa H. Tiazinha, diz o jornalista, empresta seu fetiche a produtos que devem
movimentar cerca de 30 milhões de reais em 1999. O corpo de Tiazinha é todo ele um fetiche,
uma mercadoria usada para venda de outras. É a fetichização como mercantilização geral.
Outra reportagem sobre o “promissor mercado do sofrimento” manifesta o
nivelamento superficial que se instala entre o velar e o desvelar: “escondendo o rosto e
evelando peças típicas do sadomasoquismo – o chicote, a máscara e o espartilho –, Suzana
Alves16 descortina o obscuro universo de fetiche que cerca o sadomasô17”.
Paradoxalmente, Tiazinha, “a delicada sadomasoquista”, no início dos anos 2000,
ocupava um lugar no imaginário de nove entre dez adolescentes, sendo reproduzida nos
objetos infantis os mais diversos. Comentava Luís Fernando Veríssimo: “o Brasil conseguiu
outra façanha inédita no mundo: inventou o sadomasoquismo sem maldade18”. Aludia
Veríssimo a traço da cultura brasileira que separa o símbolo ou talvez, melhor, o signo de seu
referente, sugerindo uma tendência fetichista de nossa cultura, ou seja, fazer circular
significantes vazios de forma sacralizada.
O fetichismo descrito por Freud introduz um dado de ambigüidade que nos interessa
para reinterpretá-lo como elemento positivo de criatividade. O fetichista de Freud se divide
entre o saber que a mãe é castrada e a fantasia de negar o fato. É esta dinâmica freudiana de
crença e denegação simultâneas, sublinhada por Tomaz Tadeu da Silva19 que utilizaremos
para positivar a multiplicação dos fetiches no contemporâneo como gesto positivo de criação
de sentidos num momento em que a representação perde sua transcendência ou referência
fixa. De certa forma, a produção de fetiche como acentua ainda Peter Gabriel20, pode contar a
história do passado, o mesmo podendo acontecer com relação a uma arqueologia do futuro.
Objetos inanimados tornam-se objetos de culto, objetos de desejo, objetos de medo, alimento
terrestre de nossas paixões e obsessões.
Remeteríamos, além do contexto marxiano e freudiano, ao contexto mágico,
antropológico e religioso. Esta última perspectiva parece-me bastante interessante no que ela
contém de fronteiriço entre o real e o imaginário. Talvez esteja aí a importância do fetiche na
cultura contemporânea onde a crise das representações ameaça nos levar a perda da esperança
e da crença. Talvez que a evolução da relação moda fetiche dos anos 60 aos anos 2000 possa
esclarecer este aspecto de ambivalência entre fantasia e realidade que é basicamente o que nos
mantém em processo de criação.
Nos anos 90 a sofisticação da publicidade e do marketing faz, da informação e da
invenção de “estilos de vida”, fetiches/narrativas através dos quais os indivíduos buscam se
subjetivar. De alguma forma, assistimos a uma desmaterialização/pluralização do fetiche, o
que pode ser observado em revistas sofisticadas endereçadas a “classe AA”, cujas páginas
reúnem reproduções de artes plásticas, alusões aos mais diferentes aspectos da vida
contemporânea, preferencialmente seguindo um amplo espectro de cenários que implicam
uma decodificação sofisticada. As “griffes” são distribuídas quase que aleatoriamente em
algum lugar da página. A atitude fetichista se amplia num processo de identificação cultural.
Queremos sugerir que o fetiche assume sempre mais um sentido que valoriza o limite
entre o verdadeiro e o falso, fazendo parte da dinâmica da produção cultural contemporânea.
No que se refere especificamente à moda e sua relação com o corpo, não podemos apenas
afirmar como Baudrillard que o corpo biológico é desvalorizado em prol do corpo
mercadoria. Não nos esqueçamos que o corpo é uma unidade bio-psico-sociológico e,
portanto, não desaparece apenas porque a ênfase não está na corporeidade propriamente dita,
mas passa por fantasias imagéticas que priorizam o psico-sociológico.
Passamos por uma transmutação do corpo e de seu estatuto e todo o novo imaginário
das tecnologias biológicas comunicacionais despertam a nossa fantasia para criar bens
materiais e simbólicos que fazem parte da produção de uma nova antropologia. O fetiche pode
não ser negativo, deixando de ser a mera coisificação banal e final do mundo onde o objeto
perde a sua aura. A liturgia formal do objeto pode não ter apenas o estatuto miraculoso ligado
ao consumo21. O sujeito não é apenas manipulado pelos objetos e imagens da grande máquina
de publicidade planetária22. Não tem razão Subirats23 ao lamentar o objeto perdido em meio às
abstrações e geometrias do movimento moderno e simultaneamente epifanizado em
performances minimalistas.
Num mundo globalizado, a produção do sentido, através de objetos e imagens não
precisa necessariamente ser um movimento de mão única. A comunicação no lugar de
produzir homogeneidade, pode suscitar a disputa de posições e sentidos que, certamente,
Passarão pelo reinvestimento simbólico de objetos. A cultura como dinamização da produção
de fetiche não poderá vir a ser uma desfetichização?
Referências Bibliográficas
BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976.
- - - -. La société de consommation: ses mythes ses structures. Paris: Danoël, 1970.
DENIZARD, Hugo. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998.
GABRIEL, Peter. Extra/Ordinary Objects 1. Itália: Taschen, 2003.
HARA, Hélio. In: O Globo, Segundo Caderno, 10 de março de 1999.
Jornal do Brasil, Caderno Cidade, 21 de fevereiro de 1999.
Jornal O Globo, Caderno Ela, 13 de março de 1999.
Jornal O Globo, Segundo Caderno,14 de março de 1999.
KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1994.
MARRA, Heloísa. In: O Globo, Caderno Ela, 20 de março de 1999.
- - - -. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998.
MCCLINTOCK, Anne (ed.). Social text. Durham, NC: Duke University Press, 1993.
QUESSADA, Dominique. O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a
globalização impõe produtos, sonhos e ilusões; tradução Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo:
Futura, 2003.
10
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
SILVESTRE, Edney. In: O Globo, 2 de março de 1996.
STEELE, Valerie. Fetiche: moda, sexo & poder; tradução de Alexandre Abranches Jordão. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel,
1989.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999.
WALTER, Anne. Les relations d’incertitude. Paris: Gallimard, 1987.o:A
REFERENCIA DOS NUMEROS:
4 STEELE, Valerie. Fetiche: moda, sexo & poder; tradução de Alexandre Abranches Jordão. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
5 SILVESTRE, Edney. In: O Globo, 2 de março de 1996. p.
6 BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976.
7 MARRA, Heloísa. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998. p. 5.
8 DENIZARD, Hugo. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998. p. 5. 9 O Globo, Caderno Ela, 13 de março de 1999. p. 4.
10 HARA, Hélio. In: O Globo, Segundo Caderno, 10 de março de 1999. p. 3.
11 MARRA, Heloísa. In: O Globo, Caderno Ela, 20 de março de 1999. pp. 1-2.12 MCCLINTOCK, Anne (ed.). Social text. Durham, NC: Duke University Press, 1993. p. 30.
13 KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1994. p. 11.
14 WALTER, Anne. Les relations d’incertitude. Paris: Gallimard, 1987.
15 O Globo, 14 de março de 1999, Segundo Caderno, p. 1-2. H é o nome do programa que era levado ao ar na TV
16 Nome e sobrenome da personagem Tiazinha.
17 Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 1999, Caderno Cidade, p. 25.
18 VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999, p. 7.
19 SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica,1999.
21 BAUDRILLARD, Jean. La société de consommation: ses mythes ses structures. Paris: Danoël, 1970.
22 QUESSADA, Dominique. O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a globalização impõeprodutos, sonhos e ilusões; tradução Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Futura, 2003.
23 SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989.
Disponivel em< http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/18149/1/R0243-1.pdf > acesso em 3 de janeiro de 2011
GOSTARIA QUE TODOS LESSEM COM CARINHO. APROVEITEM O DIA DE CHUVA PARA REPENSAR NOSSOS MODOS DE TRATAR O CORPO E NOSSAS PRATICAS DE CONSUMO
NIZIA FELIZ 2011
habilmente ironizar a fronteira entre o normal e o perverso e brincar com temas como a
Título:A Cultura do Fetiche: Corpo e Moda1
Autora: Nízia Maria Souza Villaça2
A Cultura do Fetiche: Corpo e Moda
“Observe também nossa capacidade de transformar
nossos objetos em fetiche e lhes atribuir poderes mágicos
ou religiosos, valores simbólicos e comemorativos,
virtudes afrodisíacas”.
Peter Gabriel3
A epígrafe, retirada do livro Extraordinários objetos, é o mote utilizado para pequeno
roteiro interpretativo das relações entre cultura, moda/corpo e fetichismo em seus diferentes
contextos (marxiano, antropológico e freudiano). Ela permite a ampliação da noção de fetiche
que, nas interpretações acima referidas, costumam conter as idéias de: substituição enganosa,
determinada pela má-fé (fetichismo da mercadoria na produção capitalista); crendice e
ingenuidade (implícita na transcendência dos fetiches em sociedades primitivas); substituição
de cunho perverso (fruto de fantasias sexuais na versão freudiana). Apostando no
reinvestimento simbólico do fetiche, seguiremos algumas etapas, visando redefinir a dinâmica
cultural, refletir sobre a relação corpo/moda e os processos de subjetivação nos contextos
contemporâneos de alta visibilidade.
1 Trabalho apresentado ao NP 15 – Semiótica da Comunicação
2 Professora Titular da Escola de Comunicação/UFRJ; pesquisadora do CNPq; autora dentre outros dos seguintes livros:
Impresso ou eletrônico? – um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad, 143 páginas, 2002; Em pauta: corpo, globalização e
novas tecnologias. Rio de Janeiro: Mauad/CNPq, 112 páginas, 1999; Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco. Co-autor:
Fred Góes, 224 páginas, 1998. E-mail: nmvillaca@uol.com.br
3 GABRIEL, Peter. Extra/ordinary objects 1. New York: Taschen, 2003.
O TEXTO
Ver na cultura um produto que se transmite, com signos estratificados e valores
produzidos hegemonicamente, implica um processo de reificação ou fetichização de viés
restritivo e negativo. Como teorizou Marx, são apagados, desta forma, os rastros das relações
sociais que a produziram. Preferimos, ao contrário, abrir espaço para um jogo de
significação/interpretação que valoriza a disputa de sentidos entre indivíduos e grupos sociais
procurando fazer valer suas vozes, seus direitos e seus fetiches. Como bem lembrou Foucault
as lutas por significados não se resolvem no terreno epistemológico, mas no terreno político
das relações de poder.
A dinâmica corpo/moda é por nós considerada dentro do subsistema da cultura
corporal que vem sendo ativamente discutido, sobretudo devido aos horizontes abertos pelas
novas tecnologias da comunicação e aos contextos em que a aparência é fator determinante da
produção de sentidos. A moda, como outros processos culturais, produz significados, constrói
posições de sujeito, identidades individuais e grupais, cria códigos que guerreiam entre si,
num fórum que se globaliza progressivamente. Se, por um lado, ela oferece estratégias ao
corpo para sua expressão/liberação, por outro, contém mecanismos de controle nas imagens
que faz circular. Os recursos estéticos da moda e o acesso ao consumo podem funcionar tanto
como elementos de cidadania, democratização e comunicação, como de exclusão elitista, via
códigos, simultaneamente rígidos e sutis, que se tornam verdadeiros fetiches, mais
importantes que o corpo.
Se observarmos o desdobramento das relações entre o corpo e a moda a partir dos anos
50, verificaremos muitas transformações no imaginário desta conexão. A moda dos anos 50
estava inscrita no âmbito de uma representação rígida, estabelecia regras nítidas de
estratificação social, distinção, impondo um comportamento que deveria ser obedecido de
acordo com a ocasião ou solenidade a que o indivíduo devesse comparecer. Havia uma
seleção de cenários e uma seqüência de peças de vestuários a serem combinadas. De alguma
forma, se, do lado da produção e do marketing, havia a moda, que chamaríamos “proposta”,
do lado do público consumidor, a recepção e o uso se davam como fetiche: acreditava-se no
poder da moda para assegurar lugares e posições. Tal imaginário transforma-se nos anos 60 e
70 e novos interlocutores ganham espaço na produção do mundo “fashion”. Misturam-se as
estéticas da alta, da média e da baixa costura, contribuindo para este fato, a importância da
disseminação do prêt-à-porter, da revolução feminina e a dos jovens. A alta costura começa a
dialogar com a rua e a moda entra efetivamente no universo cultural, enquanto lugar onde a
produção de sentido ganha espaço. Moda torna-se atitude e comportamento. Nos anos 80,
entretanto, a grande investida do mercado no âmbito multinacional vai implicar sob alguns
aspectos, uma certa paralisação desta dinâmica cultural. O fetiche, no seu viés estratificante,
toma a cena e a “griffe” é o grande objeto que acaba por imolar a incipiente expressividade do
corpo nos anos de liberação a que nos referimos. O filme O psicopata americano é
representativo da escalada da moda fetiche. Os executivos “yuppies” disputam o melhor
cartão de visita, correm atrás de uma reserva no restaurante “fetiche” e tudo parece girar em
torno da posse de objetos, sejam eles pessoas, valores materiais ou simbólicos. Nos anos 80
predominou o fetiche material que remetia diretamente ao estrato social privilegiado.
O recurso ao fetiche sexual no campo da moda vem sendo recorrente, mas, visando a
ampliar o sentido do termo, faremos a distinção de dois níveis: aquele em que o fetiche
mantém relação com o corpo e aquele em que ele parece dispensá-lo ou suplantá-lo. Tendo
em vista o viés freudiano, num primeiro nível, o uso de espartilhos, botas, couros etc., faz
parte de uma valorização do corpo, ou pelo menos mantém com ele uma relação forte. As
opiniões de Valerie Steele4 dão pistas para processar a relação moda, corpo e fetiche, nesta
primeira linha. Especialista em moda, como sistema simbólico produtor de identidade de
gênero e comportamento, a autora reconhece a semelhança entre o submundo sadomasoquista
e a moda contemporânea. “Griffes” como Azzedine Alaïa, Dolce & Gabbana, John Galliano,
Jean-Paul Gautier, Thierry Mugler, Gianni Versace, Vivienne Westwood e outros, copiaram e
copiam o estilo e o espírito do fetichismo. A moda apropria-se indiferentemente tanto dos
signos leves (moda, corpo, objetos), quanto dos pesados (políticos, morais, econômicos,
científicos). A apropriação do fetichismo evolui de acordo com as mudanças de atitudes em
relação à expressão sexual, ao desvio e ao entendimento dos estilos eróticos perversos. Já em
1996, Edney Silvestre, correspondente do jornal O Globo em Nova York, em matéria
intitulada – “Taras da moda ou moda dos tarados?” – interrogava Valerie Steele sobre a
liberação da vergonha vitoriana e a proliferação do arsenal fetichista. Em sua resposta, a
autora atribui a mudança comportamental ao movimento de liberação sexual dos anos 60 e 70
que provocou a revisão de padrões e atitudes5. Um símbolo claro desta evolução foi a
generalização das botas de cano alto, que, anteriormente, identificavam as prostitutas.
Num segundo nível de fetichismo parece ocorrer o extermínio do corpo. O fetiche não
mais valoriza partes do corpo com o corpete, o salto agulha, a lingerie, mas toma o seu lugar.
A evolução do pensamento de Baudrillard dá pistas para a compreensão do desenvolvimento
do imaginário da moda e da dinâmica corporal em direção à forma negativa do fetiche. O
autor, em L’échange symbolique et la mort6, discute, inicialmente, a moda e sua relação com
o corpo numa perspectiva marxista, procurando evidenciar uma economia política do signo e
suas estratégias de sedução. Baudrillard interpreta a moda como impeditiva da expressão do
desejo, contrariamente às opiniões da grande maioria dos estudiosos. O “design”, para o autor,
significa controle corporal: o corpo, a sexualidade e as relações políticas e sociais são
desenhadas e projetadas. Mais do que ver na profusão de signos sexuais uma expressão da
libido, ele os vê como sintoma do papel exercido pelo medo da castração, como forma de
controlar esta ameaça: fetichismo e denegação.
Esta interpretação de Baudrillard da moda, de certa forma, ainda se refere ao corpo,
discutindo seu controle e manipulação. Interessa-me, sobretudo, a fase seguinte, quando
aponta o fim da problemática do corpo, da sexualidade, da reprodução, da psicologia e da
psicanálise. A idéia de fetiche, enquanto substituição do corpo, enquanto anulação e
coisificação, corresponde ao pensamento de Baudrillard em sua última fase, quando se
dissemina o controle das tecnologias “softs” e do “software” genético e mental.
Matérias jornalísticas confirmam esta hipótese do extermínio do corpo e do segundo
nível da moda fetiche. Algumas chamam-me especialmente a atenção: “o corpo sumiu”,
afirma Heloísa Marra no jornal O Globo7. A matéria vem exatamente ao encontro da morte do
corpo assinalada por Baudrillard. O corpo vira literalmente vítima da moda no agressivo
trabalho realizado por fotógrafos estilistas, sob os mais diversos pretextos. Hugo Denizard,
em pequeno artigo crítico da questão, comenta que a moda, talvez por sua amoralidade, saiba
morte do corpo sem o peso habitual. De alguma forma, o autor concorda com Baudrillard no
sentido de que a moda, mais do que servir de complemento ao corpo, compete com ele: “a
moda sempre viu o corpo como empecilho para a experimentação. Secretamente sempre lhe
desejou a morte, a moda não quer vestir o corpo: ela quer criar um corpo que lhe sirva de
complemento. Que corpo (de carne, plástico, madeira?) é o mais adequado para a moda8.
As reportagens se sucedem, respondendo a esta pergunta. Matéria enviada de Paris
leva a manchete “Chip-chic”: clones no inverno dos internautas9. Modelos robotizados
desfilam em clima de frieza total, trazendo à tona o lado coisa do manequim. Ocimar
Versolato apresenta linha “underweare” com manequins de longos e lisos cabelos imóveis
sobre uma plataforma rotativa, confirmando a mesma inexpressão corporal10. Ainda uma
outra manchete, “o bricabraque de fetiches do japonismo barroco”, exemplifica mais um tipo
de redução do corpo a suporte para objetos de consumo, numa verdadeira febre cumulativa11.
Ronaldo Fraga, por sua vez, faz um de seus desfiles com roupas girando em cabides,
dispensando o corpo das manequins.
Para refletir sobre uma visão positiva de fetiche, faremos breve remissão a seu
emprego em cerimoniais libertinos no século XVIII, buscando sublinhar a elaboração
simbólica que mediava o cerimonial fetichista.
A Sacher-Masoch desagradava ver seu romance A Vênus das peles integrando um
quadro de sexualidade patológica, justamente porque, conforme ressaltou Deleuze, sua obra
discutia a possibilidade de transcender o humano, sua contingência, por meio do
desvelamento artístico, compreendido aí o papel desempenhado pelo objeto fetiche. O
processo compreendia lentidão, silêncio, concentração, características comuns à arte e ao
erotismo: “as pessoas na sua maioria desconhecem o encantamento. Empobrecem de tanto
falar, de se ativar. Desdenha-se o esforço que vem de dentro, a esperança das metamorfoses e
da espera12”. Kundera critica a ênfase contemporânea na velocidade, êxtase presenteado pela
revolução técnica, contrapondo-lhe a lentidão e seu valor erótico. É sugestiva a passagem do
livro La lenteur, em que comenta o entendimento que um personagem de origem americana
tem do que seja liberação sexual. A palavra orgasmo é repetida quarenta e três vezes e o autor
conclui: “o culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia
contra o ócio (...)13”.
O pequeno romance de Anne Walter14, o livro de Milan Kundera bem como as
reflexões de José Gil em Metamorfoses do corpo, oferecem pontos em comum para a
compreensão da relação entre corpos no sadomasoquismo. A interioridade mais íntima do
corpo é procurada ritualisticamente na relação com o outro. Os fetiches estabelecem as pontes
imaginárias, as metamorfoses do exterior em interior, do corpo em espírito, da percepção
externa em imagem interna. Fica sublinhado o vínculo artístico do cerimonial masoquista tal
como concebido por Sacher-Masoch e interpretado por Deleuze. O corpo se apresenta como
multiplicador dos espaços da alma e seus compartimentos. A substituição da relação direta
pelo fetiche era parte da cerimônia contratual. Tanto a versão freudiana quanto as versões, por
nós transcritas demonstram o processo ritualístico via fetiche.
No marketing da moda contemporânea, assistimos, por sua vez, a um esvaziamento de
sentido que provém basicamente do lado mercadoria da cultura e se liga ao fetiche na sua
versão negativa decantada por Marx.
Matéria no jornal O Globo15 afirma que uma linha de “lingerie”, meias, pirulitos,
máscaras, tamancos e cadernos está sendo lançada no mercado com a chancela da estrela do
Programa H. Tiazinha, diz o jornalista, empresta seu fetiche a produtos que devem
movimentar cerca de 30 milhões de reais em 1999. O corpo de Tiazinha é todo ele um fetiche,
uma mercadoria usada para venda de outras. É a fetichização como mercantilização geral.
Outra reportagem sobre o “promissor mercado do sofrimento” manifesta o
nivelamento superficial que se instala entre o velar e o desvelar: “escondendo o rosto e
evelando peças típicas do sadomasoquismo – o chicote, a máscara e o espartilho –, Suzana
Alves16 descortina o obscuro universo de fetiche que cerca o sadomasô17”.
Paradoxalmente, Tiazinha, “a delicada sadomasoquista”, no início dos anos 2000,
ocupava um lugar no imaginário de nove entre dez adolescentes, sendo reproduzida nos
objetos infantis os mais diversos. Comentava Luís Fernando Veríssimo: “o Brasil conseguiu
outra façanha inédita no mundo: inventou o sadomasoquismo sem maldade18”. Aludia
Veríssimo a traço da cultura brasileira que separa o símbolo ou talvez, melhor, o signo de seu
referente, sugerindo uma tendência fetichista de nossa cultura, ou seja, fazer circular
significantes vazios de forma sacralizada.
O fetichismo descrito por Freud introduz um dado de ambigüidade que nos interessa
para reinterpretá-lo como elemento positivo de criatividade. O fetichista de Freud se divide
entre o saber que a mãe é castrada e a fantasia de negar o fato. É esta dinâmica freudiana de
crença e denegação simultâneas, sublinhada por Tomaz Tadeu da Silva19 que utilizaremos
para positivar a multiplicação dos fetiches no contemporâneo como gesto positivo de criação
de sentidos num momento em que a representação perde sua transcendência ou referência
fixa. De certa forma, a produção de fetiche como acentua ainda Peter Gabriel20, pode contar a
história do passado, o mesmo podendo acontecer com relação a uma arqueologia do futuro.
Objetos inanimados tornam-se objetos de culto, objetos de desejo, objetos de medo, alimento
terrestre de nossas paixões e obsessões.
Remeteríamos, além do contexto marxiano e freudiano, ao contexto mágico,
antropológico e religioso. Esta última perspectiva parece-me bastante interessante no que ela
contém de fronteiriço entre o real e o imaginário. Talvez esteja aí a importância do fetiche na
cultura contemporânea onde a crise das representações ameaça nos levar a perda da esperança
e da crença. Talvez que a evolução da relação moda fetiche dos anos 60 aos anos 2000 possa
esclarecer este aspecto de ambivalência entre fantasia e realidade que é basicamente o que nos
mantém em processo de criação.
Nos anos 90 a sofisticação da publicidade e do marketing faz, da informação e da
invenção de “estilos de vida”, fetiches/narrativas através dos quais os indivíduos buscam se
subjetivar. De alguma forma, assistimos a uma desmaterialização/pluralização do fetiche, o
que pode ser observado em revistas sofisticadas endereçadas a “classe AA”, cujas páginas
reúnem reproduções de artes plásticas, alusões aos mais diferentes aspectos da vida
contemporânea, preferencialmente seguindo um amplo espectro de cenários que implicam
uma decodificação sofisticada. As “griffes” são distribuídas quase que aleatoriamente em
algum lugar da página. A atitude fetichista se amplia num processo de identificação cultural.
Queremos sugerir que o fetiche assume sempre mais um sentido que valoriza o limite
entre o verdadeiro e o falso, fazendo parte da dinâmica da produção cultural contemporânea.
No que se refere especificamente à moda e sua relação com o corpo, não podemos apenas
afirmar como Baudrillard que o corpo biológico é desvalorizado em prol do corpo
mercadoria. Não nos esqueçamos que o corpo é uma unidade bio-psico-sociológico e,
portanto, não desaparece apenas porque a ênfase não está na corporeidade propriamente dita,
mas passa por fantasias imagéticas que priorizam o psico-sociológico.
Passamos por uma transmutação do corpo e de seu estatuto e todo o novo imaginário
das tecnologias biológicas comunicacionais despertam a nossa fantasia para criar bens
materiais e simbólicos que fazem parte da produção de uma nova antropologia. O fetiche pode
não ser negativo, deixando de ser a mera coisificação banal e final do mundo onde o objeto
perde a sua aura. A liturgia formal do objeto pode não ter apenas o estatuto miraculoso ligado
ao consumo21. O sujeito não é apenas manipulado pelos objetos e imagens da grande máquina
de publicidade planetária22. Não tem razão Subirats23 ao lamentar o objeto perdido em meio às
abstrações e geometrias do movimento moderno e simultaneamente epifanizado em
performances minimalistas.
Num mundo globalizado, a produção do sentido, através de objetos e imagens não
precisa necessariamente ser um movimento de mão única. A comunicação no lugar de
produzir homogeneidade, pode suscitar a disputa de posições e sentidos que, certamente,
Passarão pelo reinvestimento simbólico de objetos. A cultura como dinamização da produção
de fetiche não poderá vir a ser uma desfetichização?
Referências Bibliográficas
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QUESSADA, Dominique. O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a
globalização impõe produtos, sonhos e ilusões; tradução Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo:
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10
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STEELE, Valerie. Fetiche: moda, sexo & poder; tradução de Alexandre Abranches Jordão. Rio de
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SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel,
1989.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999.
WALTER, Anne. Les relations d’incertitude. Paris: Gallimard, 1987.o:A
REFERENCIA DOS NUMEROS:
4 STEELE, Valerie. Fetiche: moda, sexo & poder; tradução de Alexandre Abranches Jordão. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
5 SILVESTRE, Edney. In: O Globo, 2 de março de 1996. p.
6 BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976.
7 MARRA, Heloísa. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998. p. 5.
8 DENIZARD, Hugo. In: O Globo, Caderno Ela, 21 de novembro de 1998. p. 5. 9 O Globo, Caderno Ela, 13 de março de 1999. p. 4.
10 HARA, Hélio. In: O Globo, Segundo Caderno, 10 de março de 1999. p. 3.
11 MARRA, Heloísa. In: O Globo, Caderno Ela, 20 de março de 1999. pp. 1-2.12 MCCLINTOCK, Anne (ed.). Social text. Durham, NC: Duke University Press, 1993. p. 30.
13 KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1994. p. 11.
14 WALTER, Anne. Les relations d’incertitude. Paris: Gallimard, 1987.
15 O Globo, 14 de março de 1999, Segundo Caderno, p. 1-2. H é o nome do programa que era levado ao ar na TV
16 Nome e sobrenome da personagem Tiazinha.
17 Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 1999, Caderno Cidade, p. 25.
18 VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999, p. 7.
19 SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica,1999.
21 BAUDRILLARD, Jean. La société de consommation: ses mythes ses structures. Paris: Danoël, 1970.
22 QUESSADA, Dominique. O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a globalização impõeprodutos, sonhos e ilusões; tradução Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Futura, 2003.
23 SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989.
Disponivel em< http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/18149/1/R0243-1.pdf > acesso em 3 de janeiro de 2011
GOSTARIA QUE TODOS LESSEM COM CARINHO. APROVEITEM O DIA DE CHUVA PARA REPENSAR NOSSOS MODOS DE TRATAR O CORPO E NOSSAS PRATICAS DE CONSUMO
NIZIA FELIZ 2011
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